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Full text of "Georgicas portuguezas"

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Presented  to  the 

USRARYofthe 

UNIVERSITY  OF  TORONTO 

by 

Professor 

Ralph  G.  Stanton 


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GEORGICAS 

PORTUGUEZAS. 


IMPRESSAS  POR  A.  BOBEE  ,  IMPRESSOR  DOS  ANNAES 
DAS  SCIENCIAS,  DAS  ARTES  E  DAS  LETRAS. 


GEORGICAS 

PORTUGUEZAS, 

POR 
LUIZ    DA    €ILVA    MOZINHO   DE    ALBUQUERQUE^ 

DEDICADAS 

A    SUA    MDLHER 
D.    ATÍNA  MASCARENHAS  DE   ATAIDTÍ. 


Fortimatus  et  ille ,  Deo»  qui  novit  ^Cj 
Virg-G. 


PARIS, 


Vk  OFFICINA  DE   BOBEE  ,  RUA  DA  TABLETTERIE  ^Tí"  Q, 

—  DUPLICAI 

1820. 


PROLOGO  DOS  EDITORES. 


Os  Redactores  dos  A.nnaes  das  Scien- 
cias  ,  das  Artes  e  das  Letras  rece- 
berão de  Portugal  o  Poema  intitulado 
GEORGicAs  PORTUGUEZAs,  com  as  Notas, 
que  o  a  companha  o ,  o  qual  sen  Autor 
lhes  remettêra,  deixando  ao  entender 
delles  a  sua  publicação,  se  a  tivessem 
por  conveniente.  Os  Redactores  jul- 
garão não  poder  melhor  corresponder  á 
franqueza  ,  modéstia  e  ingenuidade  do 
Autor^  do  que  publicando  por  meio 
do  prelo  o  ditto  Poema  ;  no  que  lhes 
parece  fazerem  á  Nação  hum  prezente  p 
d  agricultura  hum  serviço,  e  ao  Autor 


huma  justiça ;  e  esperâo  que  o  publico 
portuguez ,  confirmando  a  opinião  dos 
Editores,  ache  na  publicação  desta 
Obra  mais  huma  prova  do  muito  que 
elles  desejão  animar,  e  fazer  conhecer 
as  producções  originaes  portuguezas  ^ 
e  concorrer,  quanto  n elles  está,  para 
a  gloria  e  utilidade  das  Sciencias  e  da 
Pátria. 


ADVERTÊNCIA.  DO  AUTOR, 


O  MOTIVO,  que  me  fez  julgar  conveniente 
juntar  ao  texto  as  Notas,  que  dou  com  elle, 
foi  o  lembrar-me ,  que  ellas  poderão  servir 
para  acclarar  alguns  termos  technicos,  e  algu- 
mas passagens ,  que  não  estiverem  ao  alcance 
de  todo  o  leitor ,  e  igualmente  para  dar  a 
razão  de  algumas  liberdades,  que  no  texto 
tomei.  Nas  Notas  botânicas,  copiei,  quanto 
me  foi  possivel,  o  nosso  illustre  compatriota 
Félix  Avellar  Brotero,  nas  suas  Noções  ele- 
mentares d'esta  sciencia. 


GEORGICAS 

PORTUGUEZAS. 


CANTO   I. 

jf\.GRESTE  accento,  oh  doce  Nize,  escuta, 

Nize  meu  só  prazer,  amante  cara  , 

Futura  companheira  de  meus  dias; 

Ouve  os  meus  versos ,  era  que  desde  esta  hora 

Começo  a  celebrar  dos  lavradores 

Quaes  sejão  os  prazeres  e  os  cuidados  ; 

Quaes  os  trabalhos  do  que  arando  a  terra 

As  sementes  lhe  lança  ;  qual  das  viuhas 

O  trato  seja  ;  dos  diversos  gados 

Quantas  as  producções ,  e  que  desvelos 

Careção  a  final  ter  os  pastores. 


Í2  GEORGICAS. 

Musa  ,  que  outr'  ora  nas  Latinas  selvas , 
Do  vate  Mantuano  pelos  lábios , 
Ruraes  preceitos  em  sublimes  versos 
Ao  lavrador  Itálico  ensinaste, 
Hoje  em  meu  canto  hum  fogo  igual  derraiiiav 
Que  outrem  pulsando  a  majestosa  lyra 
Do  Meonio  cantor,  de  Smyrna  os  votos, 
O  incenso  appeteça  e  seus  altares  ; 
Rasgando  com  hum  voo  impetuoso 
A  barreira  dos  séculos ,  os  nomes 
Dos  heroes  ,  que  celebra  ,  pronuncie 
Ás  derradeiras  gerações  remotas  ; 
Ferindo  as  cordas  da  sublime  lyra , 
Troe  nos  ares  qual  de  Jove  a  dextra , 
Trace  horrorosos  bellicos  estragos  ; 
E  entre  ruínas  e  montões  de  mortos 
Alce  tropheos  de  sangue  salpicados  ; 
Que ,  ao  som  accorde  da  campestre  avena  , 
Eu  canto  a  vida  ,  a  singeleza  canto 
Gratas  aos  corações  e  aos  Deoses  gratas. 


CANTO  T. 

Canto  ,  oh  ]Nize  ,  os  pacificos  asylos 
Do  activo  colono  e  seus  cuidados. 
Vós,  agrestes  Deidades  bemfazejas, 
Sacras  Dr3'ades  ,  Deosas  dos  verdores , 
Que  os  troncos  protegeis  e  os  altos  bosques 
E  vós  oh  frescas  Naiades,  que  as  urnas 
Inclinando  benéficas  ,  aos  campos 
Mandais  de  vossas  aguas  a  frescura; 
Vós  ,  capripedes  Faunos  e  Baccharites , 
Em  torno  a  mim  girai,  e  os  meus  trabalhos 
Anime  o  vosso  influxo  poderoso. 

Ja  de  llhea  e  Saturno  a  áurea  idade 
Entre  os  mortaes  seus  dotes  não  espalha  ; 
Já  não  crescem  nas  várzeas  não  aradas 
As  abundantes  messes,  nem  das  rochas 
O  leite  e  o  vinho  em  borbotões  rebentão ; 
A  planta  a  florescer  já  não  convida 
Sempre  sereno  e  puro  hum  ceo  benigno ; 
Do  hirsuto  inverno  regelado  sopro , 


4  GEORGICAS. 

O  bafo  abrasador  do  ardente  estio 

Alternativamente  ao  homem  roubão 

De  hum  clima  sempre  morno  o  doce  encanto. 

Já  do  Padre  Lenêo  as  férteis  cepas 

3Xão  ornão  espontâneas  as  collinas  , 

Nem  (Je  Minerva  a  arvore  prospera 

Sem  trato  e  gem  cultura  pelos  campos. 

Áspero  tojo  ,  c'o  rasteiro  abrolho  , 

O  carrasco  abundante  em  fructo  amargo  ^ 

A  cicuta  homicida  ,  a  silva  ,  o  feto  , 

Co  junco  agudo  e  mil  ingratas  plantas 

Suífocão  tenros  germes  ,  que  a  fraqueza  , 

Bem  como  a  utilidade,  em  dote  houverãq. 

\  inde  pois  ,  oh  colonos  ,  e  deixando 

O  chaonio  aspro  fructo ,  e  do  Acheloiq 

As  frigidas  torrentes  ,  os  trabalhos 

Da  sublime  Thesmophoros,  de  Evous  , 

Pe  Minerva  e  de  Pan  seguipdo  attentos  ^ 

Colher  os  fructos  ,  recompensa  grata 

Pos  suores  da  indiístria  activa  e  nobre. 


CANTO  I.  5 

Diversas  regiões ,  diversos  climas 
Compõem  a  habitação  da  prole  humana  : 
Huns  eminente  vêm  a  Cynosura  (i) 
De  neves  abundante ,  congeladas 
Alli  as  aguas ,  negão  as  ribeiras 
Bebida  aos  gados  ,  nega  o  sueco  ás  plantas, 
Carregada  de  gelo  a  steril  terra; 
Alli  os  astros  em  continuos  gyrós   ^ 
Jamais  as  ondas  buscão  do  salgado ;  § 
Por  seis  mezes  o  sol  os  alumia  , 
E  seis  mezes  occulto ,  espessa  noute  , 
Medonhas  trevas  dissipar  não  ousa. 
Tem  huma  sorte  igual  os  que  domina 
O  austral  Xyphias  (2)  no  hemisplierio  opposto; 
K  huns  e  n  outros  jamais  do  sol  os  raios 
Acabão  de  fundir  os  altos  serros 
De  neve  tão  antiga  como  a  Terra. 
Em  tanto  ,  os  que  entre  o  Cancro  furibundo 
E  o  signo  a  Pan  no  Egypto  consagrado  (3) 
Morada  tem ,  de  hum  clima  sempre  ardente 


6  GEORGICAS. 

O  rigor  expVímentão ;  duas  vezes 
Em  o  gyro  annual  Phebo  os  visita , 
Já  quando  de  Jason  a  preza  occupa  , 
E  já  quando  alumia  a  sacra  Themis.  (4) 
Venturosas ,  oh  vós  temp' radas  zonas  , 
Que  a  tórrida  cingis ,  onde  hum  ar  doce 
Entretém  a  verdura  pelos  prados  5 
Aonde  if^o  prosperão  feras  hravas  , 
Tigres  •  TJrSos  ,  Leões,  duros  imigos 
Dos  tristes  animais  menos  forçosos  : 
A  vós  o  Ceo  em  gyro  certo  envia 
Verão ,  Outono  ,  Inverno  e  Primavera ; 
Aos  vossos  habitantes  me  dirijo  ; 
Ceres  me  anima ,  e  seus  trabalhos  canto. 

Colono  industrioso ,  a  quem  os  Numes 
De  teu  útil  suor  em  recompensa 
Olhão  propicios ,  antes  que  a  lavoura 
Comeces  em  teus  campos  ,  busca  attento 
Qual  -d^esses  campos  seja  a  natureza. 


CANTO  I.  7 

Áquem  repousa  o  húmus  nutritivo 
Sobre  a  compacta  greda  ,  alem  a  greda 
Cobre  Imm  calcário  assento  ,  alem  a  steril 
E  solta  arêa  revestindo  os  campos , 
A  apparencia  lhes  dá  da  praia  fria; 
Estes  cobrem  volcanicos  productos , 
Aquelles  producçÔes  do  mar  salgado  , 
Que  parecem  mostrar  que  em  prisca  idade 
Estendera  seu  sceptro  alli  Neptuno. 
Largas  várzeas  de  pastos  abundantes 
São  a  partilha  de  hum ,  outro  c'o  ferro 
Basga  hum  árido  solo  pedregoso.  \ 
Alli  desponta  pela  terra  a  grama 
Amiga  da  frescura,  alem  floresce 
A  esteva,  a  giesta ,  o  tojo  hirsuto; 
N'  outra  parte  o  trovisco,  que  na  terra 
Lança  as  raizes  a  buscar  frescura ; 
Do  Líbano  no  cume  o  cedro  cresce 
E  qual  iman ,  volvendo  ao  norte  a  flecha  ,  (5) 
Alonga  as  braças,  ameaçando  as  ondas; 


8  GEORGIGAS. 

Da  Suécia  nos  montes  o  pinheiro 

Ostenta  o  alto  tronco  e  verde  copa. 

Da  terra  nas  entranhas ,  n'huma  parte 

Se  forma  o  ferro  duro ,  n  outra  o  fulvo 

Ouro  luzente  e  a  prata  preciosa. 

Assim  da  variada  natureza 

A  incalculável  força  creadora 

Deo  a  cada  palz  suas  riquezas, 

£  quiz  que  os  homens ,  mutuamente  unidos 

Pelos  laços  do  int'resse ,  em  mutuas  trocas 

A  mas5a  dos  thqsouros  repartissem. 

Se  variada  he  pois  a  natureza 
Nas  "producçôes  dos  campos ,  e  em  seu  fundo 
Se  n'huns  abundão  aguas,  que  os  conservão 
J^rios  e  húmidos  sempre,  e  noutros  falta 
A  frescura  int'rior,  e  muitas  vezes 
Implorão  chuvas  e  engrossadas  névoas , 
Que  a  devorante  sede  lhes  saciem : 
Kão  deve  ser  igual  por  toda  a  parte 


CANTO  I.  9 

Das  producções  a  escolha  e  a  cultura. 
Cada  terreno  exige  seus  trabalhos  ; 
Kem  igualmente  deve  ser  tratado 
O  fértil  valle ,  ou  a  montanha  steril. 

Se  o  assento  seguro  ,  onde  repousa 
A  primeira  camada  do  terreno  , 
He  húmido  e  compacto ,  se  o  seu  nivel , 
Infrior  ao  dos  rios  e  correntes , 
A  entrada  lhes  permitte  de  tal  forma , 
Qué  alli  no  inverno  vem  na  dantes  peixes 
E  grasna  a  verde  rã  na  primavera  ; 
Ou  se  dos  montes ,  que  de  em  torno  o  cercão , 
Se  despenhão  alli  as  turvas  aguas 
Das  Hyades  chorosas  ,  (6)  que  da  frente 
Do  cornigero  Tauro  a  terra  inundão 
Na  chuvosa  estação ;  se  alli  verdejão 
Os  altos  juncos,  e  c'o  gume  agudo 
Se  devisa  o  carriço  entre  espadanas; 
Impossivel  será  que  a  Ipura  Ceres 


IO  GEORGICAS. 

As  espigas  alli  á  fouce  oíTreça 
Sem  hum  trabalho  grande ;  mas  se  attento  , 
Se  perito  cultor  com  fundas  valias 
Corta  o  terreno,  e  deposita  n'ellas 
A  agua  excessiva ;  se  com  forte  muro 
De  terra  dura  e  vigorosas  plantas , 
Constrange  o  rio  a  respeitar  seu  campo; 
Assim  co'a  inundação  gordo  o  terreno 
Será  mais  que  algum  outro  productivo. 

NÃo  de  outra  sorte  o  Hollandez  constante , 
Combatendo  os  furores  de  Neptuno , 
Lhe  rouba  hum  solo  ,  que  infrior  ás  vagas , 
He  da  industria  feliz  fértil  conquista. 
Se  oíTrece  hum  campo  tal  hum  grande  fundo, 
Das  charruas  a  entrada  não  moderes ; 
Nem  tampouco  em  terreno  aonde  a  argilla 
Cobre  hum  solo  ligeiro  e  arenoso ; 
Dobra  o  trabalho  ,  e  co'  as  lavouras  forma 
A  quaesquer  producções  útil  mistura  : 


CANTO  I.  II 

Menos  profundos  regos  porem  traça 
No  terreno  ligeiro  e  pouco  fértil  : 
E  apenas  as  sementes  cubra  a  terra , 
Se  acaso  constitue  a  arêa  o  campo, 
^utão  recêa  que  o  ardor  de  Phebo , 
Quando  do  Cancro  os  raios  seus  dardeja  , 
Em  vapores  subtiz  a  si  chamando 
Da  terra  os  suecos ,  a  seccura  inteira 
O  terreno  reduza,  e  d' esta  sorte 
Faça  murcha  cahir  a  esperança  tua. 

Examina  ,  pesquiza  attentamentc 
Quaes  são  as  producções ,  que  o  solo  vesleut 
Abandonado  a  si ;  contempla  attento 
Quaes  são  do  grão  da  terra  os  elementos, 
Qual  he  a  exposição ,  de  que  maneira 
A  agua  a  lava ,  e  de  que  parte  os  ventos 
A  costumão  bater  com  maior  força  : 
Dos  antigos  colonos  cuidadoso 
As  practicas  estuda,  e  os  dois  extremos 


ií  GEÒRGÍCAà. 

No  teu  methodo  evita;  o  povo  rude, 
De  usos  velhos  escravo ,  ás  cegas  marcha 
No  caminho  trilhado  ,  e  ás  vezes  erra ; 
Porém  erra  também  o  que  insultando 
O  rumo  antigo  ,  na  vereda  opposta 
Temerário  se  arroja  :  entre  huns  e  outros 
Convém  só  caminhar ,  a  toda  a  partfr 
A  todo  o  instante  dirigindo  os  olhos. 

Porem  já  toca  o  filho  de  latoná 
A- celeste  Balança  :  (7)  a  calma  ardente 
Começa  a  applacar-se  :  sobre  as  azas 
Dós  favonios  subtiz  grata  frescura 
Os  campos  reanima  :  o  orbe  inteiro 
Igual  a  negra  noute  tem  ao  dia. 
Já  vapores  aerios  condensados 
Em  grossas  gottas  tem  descido  á  terra, 
Que  anciosa  no  seio  ardente  os  sorve  ; 
Cuidadoso  colono  os  bois  pesados 
Prende  á  forte  charrua  e  ara  os  campos. 


CANTO  I.  i3 

Carreguemos,  oh  Nize,  dos  novilhos 
Co'  jugo  a  frente  :  de  teu  lado  eu  vôo , 
O  trabalho  me  chama.  He  este  o  tempo 
De  revolver  co'  arado  â  dura  terra , 
De  expôr-lhe  bem  rasgado  o  fértil  seio 
A  receber  o  influxo  fecundante 
Da  subtil  atmosphera  :  he  este  o  tempo 
Em  que  o  feno  que  os  largos  campos  cobre. 
Sob  as  leivas  submerso  apodrecendo, 
Prepare  suecos ,  e  de  força  ás  terras. 

Bem  depressa  entre  nuvens  procellosa» 
O  fogoso  Orião  (8)  co'  braço  ingente. 
Conduzirá  o  horror  das  tempestades  ; 
Em  o  terreno  pobre  he  pois  forçoso 
Que  elle  encontre  nascido  o  tenro  nabo  ,■ 
O  amargo  tremoço ,  a  fusiforme  (9) 
Raiz  do  rabão ,  que  na  primavera 
Novamente  voltados  co'a  charrua  , 
Hão  de  formar  o  adubo  precioso , 

a 


1 4  GÉORGICÂS. 

Decompostos  no  seio  que  os  criara. 

He  tempo  ,  ah  corre ,  de  escolhidos  trigos 
Enche  o  semeador  :  ultimo  corte 
Ao  terreno  vou  dar,  já  preparado 
A  receber  o  grão  :  prendão-se  ás  grades 
Ligeiras  egúas  ,  cubrão-se  as  sementes 
Dos  senteios,  dos  trigos,  dâs  cevadas, 
Da  leve  avéá,  e  em  direitos  regos 
Compassada  se  lance  a  grossa  fava 
E  a  redonda  ervilha  :  aproveitemos 
O  tempo  claro ,  em  que  o  terreno  leve 
Ijíão  acabrunha  o  grão,  ou  o  germe  esmagrt, 

Ah  .'  longe  o  ócio  ,  longe  a  vil  preguiça  , 
iPois  que  o  homem  nasceo  para  o  trabalho  i 
E  que  doce  trabalho !  ah  !  de  meus  olhos 
A  imagem  fuja  de  infelizes  horas 
Consumidas  em  triste  ociosidade. 
Com  que  prazer,  oh  Nize,  espero  hum  díd^ 


CANTO  I.  i5 

Qiiando  cansado  eu  volte  da  lavoura  , 

Ver-te  correr  a  mim, «  cu  aos  tens  braços 

Satisfeito  voar  I  do  nosso  albergue 

Fugirão  a  tristeza,  o  negro  enjoo 

Filho  da  ociosidade ,  e  pai  dos  crimes  ; 

Aos  filhos  inda  tenros  ensinando 

A  aproveitar  as  forças  infantinas. 

Cora  ellas  o  trabalho  ajudaremos. 

Em  quanto  o  lavrador  a  esteva  empunha , 

Com  a  vara  o  filhinho  os  bois  lhe  rege , 

Outro  a  loura  semente  lhe  ministra 

Quando  o  campo  scíriêa ,  outro  em  liiil  gyros 

Passa  e  repassa  no  terreno  a  grade. 

Oh  !  mil  vezes  feliz  todo  o  que  pode 
A  singelos  prazeres  dedicar-se  I 
Feliz  mil  vezes  o  que  aos  pés  calcando 
Huma  van  ambição,  e  os  seus  prestigios, 
Ri  dos  balanços  de  que  os  grandes  tremem ; 
Que  os  revezes  não  teme  da  fortuna  ,• 


lô  GEORGICAS. 

Que  sempre  útil  aos  outros  e  a  si  mesmo , 
Conhece  e  goza  a  verdadeira  gloria  í 
Para  o  mortal  feliz  que  assim  cultiva 
No  regaço  da  paz ,  da  terra  o  seio  , 
Novamente  a  traçar  ruraes  preceitos 
Cora  o  amparo  teu ,  Musa ,  começo, 

HuMA  longa  exp'riencia  reconhece 
Quanto  ao  cultor  nocivo  he  o  desejo 
De  sempre  recolher  no  mesmo  campo 
O  precioso  grão  da  flava  Ceres. 
Tu  mesmo  que  retalhas  co'a  charrua 
O  mais  fecundo  chão ,  se  não  desejas 
Virar  em  pouco  tempo  hum  solo  exhausto. 
Alterna  as  producções  nas  lavras  tuas. 
O  terreno,  onde  hum  anno  a  fouce  curva 
Do  trigo  tem  prostrado  a  espiga  loura. 
Orne  no  anno  seguinte ,  se  elle  he  fresco 
E  de  agua^bundante,  verde  milho; 
Se  leve  e  golto  ,  estenda  pela  terra 


CANTO  r.  17 

Seus  tuberosos  pomos  ( i  o)  a  batata ; 
Alli  o  nabo  cresça ,  ou  cresção  plantas 
A  nutrição  dos  gados  necessárias. 
O  cultor  Galabrez  da  sula  os  fenos 
Tira  da  terra  no  anno  em  que  a  descansa  , 
E  co'  ultimo  corte  aduba  o  campo , 
Cujo  seio  a  charrua  despedaça. 
Muitos  vigorão  hum  terreno  exhausto 
Tendo-o  em  prado  por  tempos  convertido , 
Ou  lhe  lanção  a  óptima  luzerna 
De  profunda  raiz  ,  ou  o  alto  trevo. 
Ou  o  onobrychis  próprio  á  terra  ingrata,  (11) 

Oh  de  que  admiração ,  oh  de  que  espanto 
Enche  a  sabia  natura  o  que  as  leis  suas 
Profundo  estuda ,  e  co'  a  razão  consulta ! 
Desde  os  gyros  marcados  dos  planetas , 
Desde  a  gravitação  de  ingentes  massas  , 
Te'  ao  despojo  da  mesquinha  planta, 
Até  á  morte  do  mais  vil  insecto , 


i8  GEORGICAS. 

Tudo  tende  ao  seu  íim ,  nada  he  perdido. 

Na  terra  nasce  a  planta ,  da  atmosphera, 
E  do  seio  que  a  nutre  os  suecos  tira ; 
Mas  cahindo  a  final  no  mesmo  seio 
Fecundo ,  que  a  criou ,  com  abundância 
Llie  restitue  os  dons  que  lhe  roubara  , 
E  seu  despojo  transformado  em  húmus 
Abundante ,  a  vigora  e  lhe  dá  suecos 
Que  nutrem ,  em  vez  de  huma  ,  varias  plantas. 
Assim  do  bosque  antigo ,  que  prostrara 
A  mão  severa  do  voraz  Saturno , 
As  reliquias  descendo  aos  fundos  valles, 
Com  o  lapso  do  tempo  os  tomão  ferieis; 
Assim  as  aguas ,  que  no  iroso  inverno 
Descendo  do  alto  monte ,  a  terra  alagão , 
Com  sigo  mortos  ramos  arrastando  , 
Baixão  aos  campos  e  hum  nateiro  fértil 
Sobre  as  exhaustas  lavras  depositão. 
Não  de  outra  sorte  o  Nilo ,  que  engrossarji 


CAINTO  I, 
Na  Ethiopia  a  chuvosa  primavera, 
Por  sete  vezes  com  horrendo  estrondo 
Cahindo  despenhado  dos  rochedos 
Entra  no  Egypto  ,  inunda  socegado 
Os  campos,  e  dos  Íncolas  ditosos 
Forma  todo  o  prazer,  toda  a  abundância. 

Mas  nem  em  toda  a  parte  a  natureza 
Quiz  ella  mesma  ser  quem  adubasse. 
Quem  viesse  trazer  o  sueco  á  terra ; 
Contente  de  traçar-nos  o  caminho, 
O  trilhá-lo  deixou  á  industria  nossa. 
Assim  o  agricultor  attcnto  busca 
Povoar  o  terreno  que  prepara, 
De  succulentas  e  ramosas  plantas, 
Que  possa  submergir  co'  forte  arado , 
Quando  cobertas  de  viçosas  flores 
Com  a  volta  da  fresca  primavera  , 
Lhe  podem  fornecer  de  fértil  húmus 
A  maior  copia  j  aos  pds  das  rezes  suas 


'9 


90  GEORGICAS. 

Estendendo  o  palhiço ,  ou  tenro  mato , 
Lança-os  em  covas ,  onde  fermentando , 
Por  tempos  em  adubo  se  convertem. 
Sàa,  trabalha;  que  a  fadiga,  o  trato 
São  partilha  do  agrícola,  e  contente 
Nas  lavras  em  que  assiduo  se  esmerara 
Vê  a  final  crescer  fecunda  messe. 
Nem  desprezar  eu  devo  no  meu  canto 
Do  colono  infeliz  de  pobres  terras 
A  industria  que  lhe  faz  tornar  em  cinzas 
A  esteva ,  a  giesta ,  o  baixo  feto , 
E  dar  assim  vigor  ao  seu  terreno. 

Porem  nem  só  das  plantas  os  despojos , 
Nem  só  dos  animaes  o  quente  estrume, 
Productivos  os  campos  tornar  podem. 
São  diversos  os  solos  como  os  climas. 
Sobre  a  argilla  tenaz ,  que  não  permitte 
Das  raizes  a  entrada ,  a  solta  arêa 
Grande  effeito  produz ;  bem  como  a  argilla 


CANTO  I.  21 

Ligando  as  partes  de  arenosa  terr*. 
A  força  de  lavouras  repetidas 
Tornão-se  a  cré  e  o  tufo  productivos , 
E  no  campo  onde  seixos  importunos 
Da  cultura  os  trabalhos  embaração 
O  lavrador  se  applica  a  separá-los. 
Este  calcina  em  fornos  pelo  campo 
O  tenaz  barro ,  aquelie  com  pequenas 
Valias  enxuga  hum  brejo,  em  quanto  est'outro. 
Fazendo  rebentar  com  fogo  as  peijhas , 
Vai  hum  caminho  abrir  ás  frescas  aguas, 
Que  depois  murmurando  em  canaes  vários, 
A  refrescar  conduz  as  plantas  suas. 

Mas  tu  agora,  oh  firme  scrutadora 
Dos  thesouros  da  fértil  natureza  , 
Musa,  ao  Agricultor,  da  marga  (12)  o  uso 
Canta  e  ensina.  Aquella  que  se  esfolha , 
Que  absorve  a  agua  e  n'ella  se  dissolve 
He  própria  para  o  fraco  estéril  solo , 


122  GEORGICAS. 

Que  por  contínuos  fructos  esgotado 

Carece  de  conforto  e  de  socorros; 

Aquella  em  que  a  alumina  he  dominante. 

Com  vantajem  se  applica  á  nimiamente, 

Ou  areenta,  ou  desligada  terra  j 

A  calcaria  porem  leva  a  abundância 

Ao  terreno  tenaz,  ao  encharcado, 

Bem  como  áquelle  em  que  domina  a  aréa 

.Yitriíicavel ,  magra,  solta  e  estéril. 

Quando  n'  hum  solo  ingrato  o  cultor  sábio 
Tem  descoberto  a  marga,  nova  esp'rança 
Luz  aos  seus  olhos ;  elle  a  arranca  a  ferro 
Do  seio  que  a  contêm ,  em  vários  montes 
Aos  rigores  a  expõe  do  frio  inverno , 
E  quando  a  primavera  vera  cobrindo 
De  flores  as  campinas ,  rijo  malho 
Desfaz  a  pedra  co'  as  geadas  branda , 
E  em  dose  moderada  pelo  campo 
O  fecundante  pó  então  se  espalha  , 


CANTO  i.  a 

Ènteira-se  á  ciiarrua,  e  quinze  dias 
Depois ,  ara  de  novo  a  relha  o  solo ; 
Sobre  tudo  se  de  aguas  abundante , 
liançou  o  ceo  chuveiros  sobre  a  terra, 

Taes  são ,  oh  Nize  cara ,  os  que  no  campo 
í)etem  o  lavrador  empregos  vários ; 
Porem  quando  das  nuvens  procellosas 
Cahe  a  cruel  saraiva,  a  chuva  grossa  , 
Quando  zunindo  os  ventos  indomados 
Pelos  bosques  os  ramos  despedação , 
He  no  simples  abrigo  das  cabanas 
Que  se  occupa  o  cultor ;  hum  entrelaça 
O  brando  vime,  e  d'elle  os  cestos  tece, 
Outro  afia  o  machado ,  e  falca  os  troncos 
Seccos  e  fortes;  este  faz  reparos 
Na  pesada  charrua ,  aquelle  aprompta 
Cangas  e  jugos ,  em  quanto  outro  fende 
Com  a  serra  mordaz  madeira  era  pranchai» 


^4  GEORGICAS. 

Houve  tempo  em  que  errantes  entjr'às  sei  Vás, 
Dos  fructos  que  spontanea  a  terra  dava , 
Os  selvagens  humanos  se  nutrião. 
Oh  bem  haja  o  mortal  que  ousou  primeiro 
Forçar  o  touro  a  submetter-se  ao  jugol 
Oh  bem  haja  o  primeiro ,  que  dobrando 
A  força  de  calor  o  duro  ferro 
Fez  aos  humanos  conhecer  seu  tiso  í 
Desde  o  primeiro  simples  instrumento 
Destinado  a  rasgar  da  terra  o  seio  , 
Seu  invento  nascer  vio  cada  idade, 
E  a  arte,  mais  e  mais  ganhando  luzes, 
Melhorou  pouco  a  pouco  o  rude  arado 
Do  primeiro  cultor;  já  adaptando 
A  relha  ao  ligneo  primitivo  dente , 
Já  a  sega  cortante  á  aguda  relha , 
Já  a  ambas  unindo  a  rija  aiveca ; 
Te  que  varias  espécies  de  charruas. 
Próprias  a  varias  terras  ,  vários  usos, 
A  escolha  do  cultor  se  apresentarão. 


CANTO  í.  25 

Descrever  não  intento,  oh  Nize,  agdra 
As  proporções ,  a  forma ,  ou  a  grandeza 
Dos  úteis  instrumentos  aratorios; 
Direi  só  quaes  convém  ás  varias  terras ,    * 
Conforme  o  vario  trato  com  que  folgão^ 
Terreno  asp'ro  e  duro  ,  lie  bem  se  rasgue 
Profundamente,  e  n'elle  o  cultor  hábil 
A  huma  charrua  forte  prende  o  tiro  j 
O  contrario  practica  em  leve  solo , 
Em  hum  chão  areento  ,  e  no  em  que  teme 
Chamar  á  superfície  estéril  terra. 

De  forças  económico  o  artista 
A  charrua  pesada  une  mais  segas 
Para  abrirem  caminho  á  larga  relha  ; 
Ou  do  dente  também  as  faces  burne , 
E  para  elle  escolhe  o  rijo  tronco 
Da  pereira  ,  abrunheiro ,  ou  de  que  pendeirt 
As  sanguíneas  cerejas,  preferindo 
O  criado  em  hum  sitio  secco  e  alto , 

5 


26  GEORGICAS. 

Pedregoso  6  exposto  ao  sol  nascente : 

O  carvalho  frondoso,  e  o  que  envolve 

Porosa  casca  ,  tronco  da  sobreira 

Naá  mãos  do  constructor  não  são  inutèi^, 

Nem  inda  o  rijo  páo  de  antigos  freixos. 

De  hum  açb  puro  de  Vulcano  o  aluranò 

Sobre  a  rija  bigorna  a  relha  forma , 

Alli  forja  também  segas  cortantes. 

Humas  vezes  á  relha,  quando  a  aiveca 

Passa  dé  hum  lado  ao  outro,  a  forma  imprime 

Da  mortifera  lança  de  Mavorte; 

Outras  para  a  charrua,  que  constante 

A  leiva  volve  sempre  ao  mesmo  lado , 

Só  d'esse  á  relha  forma  gume  agudo. 

Destinada  a  lançar  no  aberto  rego 

Do  novo  rego  a  terra ,  a  enterrar  n'  ellc 

As  arrancadas  semi-murchas  plantas, 

Em  forma  curva  deve  ser  a  aiveca, 

E  na  parte  ext'rior  polida  e  liza. 


CANTO  I.  27 

Qual  empunhando  o  leme  o  nauta  ousado 
Na  derrota  ao  navio  fita  a  proa. 
Assim  o  lavrador ,  em  quanto  canta 
Após  os  tardos  bois ,  co'  a  curta  esteva 
A  charrua  dirige ;  a  braça  curva 
D'hum  lenho  forte  a  construí-la  he  própria. 
O  apego  he  da  charrua  exacto  guia , 
D'  elle  depende  o  fundo  em  que  entra  o  dente, 
D'  elle  a  ordem  dos  sulcos  e  a  grandeza ; 
Busca,  oh  artista,  o  tronco  hum  tanto  curvQ 
Da  faia,  freixo,  ou  tilia  e  d' elle  o  forma; 
Leves  madeiras  e  delgados  ferros , 
Combinados  e  unidos  com  destreza 
Devem  compor  os  círculos,  que  gyrao 
Levemente  no  eixo ;  assim  ao  tira 
O  enfado  evitarás ,  de  mór  esforço. 

Para.  romper  de  novo  antigos  prado», 
A  charrua  sem  dente  he  vantajosa, 
£  a  fim  de  dividir ,  quebrar  a  terra 


28  GEORGICAS. 

São  as  pesadas  grades  necessárias; 
Com  as  ligeiras  cobrem-se  as  sementes  ■ 
De  fortes  carros ,  de  carretas  leves 
Ha  mister  a  final  toda  a  cultura. 

Até  agora  cantei  da  terra  o  trato  , 
As  lavouras  tendentes  a  apromptá-la 
Aos  benignos  influxos  da  atmosphera; 
Mostrei  a  arte  de  adubar  os  campos, 
A  fim  de  lhes  prestar  fecundos  suecos  : 
Trato  agora  dos  regos  que  a  charrua 
Deve  dar  ao  terreno,  antes  que  a  elle 
A  semente  se  lance;  agora  digo 
O  tempo ,  o  modo  d'  espalhar  nas  terras 
Os  preciosos  grãos,  úteis  legumes, 
As  raizes  e  plantas  nutrientes. 
Tu  Deosa  do  cultor,  oh  flava  Ceres, 
Tu  me  reforça  a  voz ,  e  accende  a  mente ! 

Antes  de  dar  qualquer  semente  ao  campo, 
He  preciso  primeiro  (jue  lavrada 


CANTO  I,  39 

Seja  este  muitas  vezes  :  não  recêes 
O  trabalho ,  oh  cultor ;  que  sem  trabalho 
Não  produzqm  as  lavras  abundância. 
Cruze  hum  rego  outro  rego ,  com  seus  dentes 
Quebre  e  divida  a  grade  a  cogulada 
Terra  junta  em  torrões  :  de  novo  passe 
No  terreno  a  charrua ,  e  então  nelle , 
Segundo  a  qualidade  e  a  natureza, 
A  semente  se  espalhe  productiva. 
• 
Se  em  terreno  fecundo ,  fofo  e  leve 
Pertendes  semear  branda  batata , 
Em  varias  ])artes  a  raiz  divide^ 
Cada  huma  das  quaes  contenha  hum  germe, 
E  ao  longo  dos  regos  da  charrua 
A  iguaes  espaços  cuidadoso  a  lança, 
Distribuindo  em  torno  hum  próprio  adubc^ 
Se  faz  o  louro  milho  a  esp'  rança  tua , 
Assaz  fundo  co'  a  grade  o  grão  enterra. 
Traçando  logo  no  terreno  lizo 

4  3* 


3o  GEORGICAS. 

As  regadeiras ,  que  no  ardente  estio 

Alli  devem  guiar  as  frescas  aguas. 

De  hum  modo  semelhante  o  feijão  tenro, 

O  grão,  a  ervilha  no  terreno  lança  , 

E  no  outono  o  tremoço  amargo  enterra , 

Bem  como  a  fava  em  alinhados  sulcos. 

Mas  se  o  linho  te  occupa ,  tenra  planta , 

Que  toma  formas  mil  nas  mãos  da  arte , 

Ou  seja  para  ornato  e  cobertura, 

Ou  seja  para  as  cordas  vigorosas. 

Trabalha  mais  que  nunca  o  teu  terreno , 

Mais  que  nunca  o  aduba,  e  tão  somente 

Hum  tal  cuidado  emprega  em  solo  fresco, 

Bom,  solto  e  leve,  e  de  aguas  não  escasso. 

Para.  formar  os  permanentes  prados 
Da  luzerna,  do  trevo  e  de  outras  plantas, 
Erro  p'rigoso  fora  ao  fértil  solo 
Roubar  lavouras  e  poupar  trabalhos. 
Venturoso  o  colono ,  que  habitando 


à 


CANTO  I.  5i 

Pertil  paiz,  de  braços  abundante, 
Após  os  gyros  da  pesada  grade 
A  malho  faz  estorroar  a  terra  ! 
A  neve ,  que  durante  a  estação  dura , 
Força  co*  peso  a  encurvar  os  ramos 
Das  arvores  e  arbustos ,  he  temível 
Para  o  milho  inda  tenro ,  e  damnifica 
O  nascido  feijão;  esse  o  motivo 
Por  que  para  os  lançar  ao  solo  aguarda 
Da  primavera  a  volta  o  cultor  hábil. 
Nascidas  estas  plantas,  duas  vezes 
Gozão  da  sacha  o  proveitoso  trato , 
Já  para  destruir  nocivas  plantas  , 
Já  para  as  desbastar,  chegar-lhes  terra. 
Ao  menos  huma  vez  igual  trabalho 
Faz  praticar  em  derredor  da  ervilha , 
Do  amarello  grão  ,  da  parda  fava  : 
E  da  batata  as  hasteas  productivas 
Por  varias  vezes  sob  a  terra  estende. 


32  GEORGICAS. 

Porem  tu ,  dos  mortaes  ricco  thesouro , 
Tu  precioso  dom" da  flava  Ceres, 
Agora  sê  objecto  do  meu  canto. 
Ouvi-me,  oh  lavradores,  escutai-me: 
He  tempo  de  lançar  o  trigo  aos  campos. 

Jamais  produzir  pode  a  má  semente 
Ao  cultor  hum  nutrido  e  limpo  fructo ; 
Jamais  o  trigo  secco ,  o  enrugado , 
Ou  roído,  gr^ado,  ou  com  mistura 
D'  estranhos  grãos,  produz  formosas  messes í 
O  primeiro  em  si  mesmo  traz  a  origem 
Da  frí^queza  e  dos  vicíos ;  o  outro  abriga 
Inimigos  fataes,  que  a  suíTocá-lo 
Nos  regos  hão  de  vir.  Hábil  colono  , 
Passa  no  crivo  ,  na  joeira  passa 
O  trigo  que  ao  terreno  teu  confias. 

Cultores  ha  ,  que  ao  seu  int'resse  attentos, 
Em  barreia  alcalina  os  grãos  mergulhão , 


CANTO  L  33 

Afim  de  aniquilar  os  roedores 
E  nocivos  insectos  que  os  devorão. 
Mas  ainda  a  pezar  do  mor  desvelo, 
No  mesmo  solo  o  trigo  degenera  , 
Mais  de  três  vezes  sendo  semeado  : 
Deve  pois  o  cultor  de  tempo  em  tempo 
Renovar  as  sementes ,  e  buscá-las 
Em  análoga  terra ,  e  verá  ledo 
Crescerem  no  seu  campo  altivas  messes 
Coroadas  de  espigas  preciosas; 
Sobre  tudo  se  o  grão  em  tal  mudança 
Se  acha  lançado  em  mais  fecundo  solo. 

Depois  que  revolvida  foi  a  terra 
Com  lavouras  cruzadas ,  que  o  seu  seio , 
Passado  já  o  caloroso  estio , 
Com  abundância  refrescado  ha  sido 
Pelas  primeiras  aguas,  quando  os  germrs, 
Que  no  campo  cahirão ,  por  si  mesmos 
ílompem ,  se  desenvolvem ;  quando  os  bosques 


34  GEORGICAS. 

Despem  as  folhas,  que  o  verão  crestara, 
E  Arachne  pela  terra  as  tramas  urde 
Estendendo  no  rego  o  argênteo  fio : 
Quadra  em  que  o  sol  de  nós  desvia  os  raios , 
E  vai  da  Libra  ao  furibundo  Scorpio  :  (i3) 
Cautella  então ,  cultores,  chega  o  tempo 
Do  momento  espiar  da  sementeira. 

N'  HTiM  dia  claro  e  secco ,  e  quando  a  tçrra 
Bem  movida  e  quebrada,  húmida  esteja 
Em  proporção  tão  justa ,  que  nem  voe 
^m  pó  subtil ,  nem  c'o  trabalho ,  unida 
E  compacta  se  torne,  avançar  deve 
Dextro  semeador ,  e  com  mão  certa 
Espalhar  pelas  lavras  a  semente. 
He  após  os  seus  passos,  que  trotando ^ 
Conduzindo  traz  si  ligeira  grade, 
Ocyroe  (i4)  cobre  os  grãos  co'a  terra  solta, 
pitoso  o  lavrador  se  no  seu  campo 
|{|p  fica  bum  só  torrão  que  p  germe  esmague. 


CANTO  li  35 

À  estação,  o  tempo,  a  natureza 
Do  solo  que  se  aroii,  e  a  experiência 
De  versados  cultores  tão  somente 
Devem  determinar  a  quantidade 
Dos  grãos ,  que  á  mão  convém  lançar  na  terra* 

La  onde  as  frias  aguas  demoradas 
Fazem  apodrecer  ho  húmido  inverno 
Os  tenros  germes,  as  sementes  cobre, 
Em  vez  da  grade ,  huma  charrua  própria , 
Que ,  levantando  a  terra  a  hum  lado  e  ao  outro, 
Deixa  no  meio  hum  fosso  aberto  ás  aguas , 
E  o  grão  desponta  em  alternadas  cintas. 
He  assim  que  os  cultores ,  implorando 
A  clemência  dos  ceos,  a  sua  esperança 
No  seio  de  Cybele  depositão. 

A  terra  desce  o  inverno,  as  grossas  chuvas, 
Os  rijos  furacões ,  a  branca  neve 
Molhão ,  batem ,  alvejão  pelo  campo. 


36  GEORGTCAS. 

Os  mortos  ramos  com  torcidos  braços- 

As  espinhosas  balsas  sempre  verdes 

Interrompem  a  alvura  das  campinas. 

Que  branquejão  co'  crespo  caramelo^ 

Fumão  ao  longe  as  rústicas  choupanas, 

Aonde  o  lavrador  sentado  ao  fogo 

Os  membros  seus  requenta  agasalhado ; 

Em  quanto  o  caçador  pelas  encostas 

O  veado  ligeiro ,  a  cerva  esquiva , 

O  javali  cerdoso  acerta ,  e  mata; 

Ou  c'  os  galgos  persegue  na  carreira 

Timída  lebre,  que  ligeira  salta. 

Este  espera  nas  turvas  alagôas 

O  pato  grasnador,  a  altiva  garça; 

Aquelle  a  saborosa  gallinhola. 

Assim  de  bellas  Nymphas  rodeada  , 

Cingido  o  seio  de  grosseiras  pelles, 

Com  a  aljava  no  hombro,  o  arco  em  punlio , 

A  soberba  Diana  lá  da  Caria 

Nos  altos  montes  e  brenhosos  bosques 


CANTO  I.  37 

Acossa,  vence,  e  em  terra  as  feras  lança. 

Em  tanto  a  natureza  desenvolve 
Os  preciosos  germes ;  já  desponlão 
As  tenras  folhas,  e  de  hum  verde  alegre 
Esmaltão  as  campinas;  os  cultores 
Vem  cheios  de  prazer  correr  os  campos , 
Rogando  ao  ceo  que  ajude  os  seus  trabalhos , 
E  os  recompense  co'  a  abundante  espiga. 

Chega  a  fresca,  a  viçosa  primavera  , 
Reverdescem  os  bosques ,  brotão  flores  , 
Os  fructos  promettendo ;  o  sol  derrete 
As  crystalllnas  neves  ,  que  fundidas 
Vem  engrossar  as  rápidas  ribeiras; 
As  implumadas  aves  amorosas 
D' entre  a  nova  verdura  alegres  cantão; 
Zephyro  beija  as  rosas ,  e  convida 
Os  Satyros  saltjmtcs  e  os  galhudos 
Caprinos  Faunos  a  seguir  as  Nymphas 

4 


38  GEORGICÁS. 

Por  entre  os  verdes  troncos.  Vem ,  oh  Níze , 
Juntos  os  ledos  campos  percorrendo  , 
Das  novas  flores,  que  dos  ramos  pendem. 
Odorantes  capellas  teceremos ; 
Tem  do  lindo  lilaz ,  da  purpurina 
Fragrante  rosa  e  cândida  açucena 
A  frente  coroar.  Vinde,  oh  prazeres, 
Companheiros  fieis  da  tenra  Flora, 
Suaves  risos,  alegrai  os  campos. 
As  rédeas  sacudindo  ás  niveas  pombas, 
Vénus  no  carro  de  ouro  desce  á  terra. 
Vem  após  ella  co'  as  douradas  tranças 
Nos  coUos  de  alabastro  ao  vento  soltas , 
Tecendo  as  Graças  mil  gentiz  choreas, 
E  em  leves  gyros  voltejando  Amores. 
Prazer  doce  os  trabalhos  acompanha 
Bo  agricola  fehz ,  e  de  continuo 
Amorosas  canções  Echo  repete# 

Áquem  trigo  tremcz  cantando  lança 


CATsTO  I.  39 

O  lavrador  á  terra ,  e  d'  esta  sorte 
Assegura  prudente  o  seu  sustento; 
Cresce  aqui  a  cevada ,  que  nascera 
íío  precedente  outono ;  alli  á  terra 
He  lançada  a  que  he  própria  á  primavera. 
Milho ,  feijão  de  espécies  variadas 
Alem  recebe  o  solo ,  grãos ,  lentilhas. 
Aquém,  curvando  ao  jugo  a  larga  frente. 
Os  novilhos  co'  as  leivas  vão  cobrindo 
O  verde  ornato  dos  fecundos  campos ; 
E  entre  os  viçosos  trigos  já  nascidos 
Em  bandos  as  alegres  camponezas, 
Com  festivaes  accentos  o  ar  ferindo , 
Cuidadosas  separão  as  más  plantas, 
£  lhes  arrancão  a  raiz  nociva. 

Que  segredos,  oh  Niza,  que  bellezas 
Das  flores  a  estação  nos  apresenta! 
Segunda  creação  do  vasto  mundo , 
Novos  entes  o  ser  nella  recebem , 


4a  GEORGICAS. 

Seja  entre  os  animaes,  seja  entre  as  plantas; 

De  Colchos  manda  o  signo  mil  amores 

Ileinar  nos  ares  ,  voltejar  na  terra  , 

E  os  humanos  alegra  ,  promettendo 

O  corno  precioso  de  Amalthea. 

Meteoros  eléctricos  variãò 
O  estado  da  atmosphera ,  e  accelerão 
Ora ,  e  ora  retardão  a  carreira 
Dos  suecos  nas  entranhas  já  das  plantas  ^ 
E  já  dos  animaes^  de  ApoUo  o  raio 
Ora  as  nuvens  encobrem,  e  ora  brilha; 
Ora  soão  trovões  sobre  as  montanhas; 
Pra  desce  huma  chuva  fecundante , 
perramando  a  frescura  pelos  valles. 

Mas  já  na  quarta  divisão  celeste 
Aonde  curva  o  Cancro  ingentes  braçoç, 
ílntra  o  luminar  do  Orbe ;  o  quente  estio 
jSuccede  á  temperada  primavera. 


CANTO  I.  /n 

Já  o  esta  me  (i5)  ao  pistillo  fecundado 
Deixa  o  fiucto  formar,  e  cahe  na  terra, 
Com  a  coroUa  em  cores  variada. 
Menos  tenras  das  arvores  as  folhas 
Oppõem  de  Phebo  aos  chammej antes  raios 
Verde  barreira ,  que  romper  não  ousão. 
De  torrentes  já  menos  abundantes 
Sobre  o  junco  e  caniço  as  frescas  Naides 
De  espadana  cVoadas  sobre  as  urnas 
Exhaustas  se  adormecem ;  de  entre  os  matos 
Sahe  o  sardão  malhado ,  a  escamosa 
Cobra ,  vibrando  ao  sol  sanguineo  dardo. 
Nos  tectos  já  de  Progne  pia  o  filho  ; 
Philomt^la  infeliz  põe  termo  ao  canto , 
Que  ha  pouco  os  frescos  bosques  deleitava  ; 
Já  a  cor  da-  esmeralda  cede  á  do  ouro. 
Ja  as  louras  espigas  estremecem 
Do  vento  sacudidas.  Oh  momentos 
De  prazer  para  o  campo  !  Os  lavradores 
Erguem  as  mãos  ao  Ceo ,  ao  Ceo  supplicão 

4* 


42  GEORGICAS. 

Continue  a  olhá-los  com  piedade 
Té  ao  ultimo  instante  das  colheitas. 

MosTRA-SE  na  extensão  dos  férteis  campos 
Não  só  a  esp' rança  do  cultor,  mas  nelles 
Se  vê  de  huma  nação  todo  o  thesouro. 
Afasta,  oh  Ceo  piedoso,  o  hórrido  estrago 
Da  saraiva  cruel ,  que  em  hum  momento, 
Companheira  do  raio  furibundo , 
Extingue  todo  p  bem  com  tanto  esforço 
E  tanto  suor  ganho ;  afasta  as  chuvas , 
Que  ás  vezes  alagando  as  louras  messes, 
Das  ribeiras  engrossão  as  correntes 
E  arrastão  entre  as  ondas  procellosas, 
Entre  as  ruinas  com  enorme  estrago 
A  vital  nutrição  de  hum  povo  inteiro. 
Flagellos  horrorosos ,  que  a  vingança  ^ 

Dos  Numes  irritados  muitas  vezes 
A  terra  manda;  após  os  quaes  levantão 
A  mofina  indigência ,  a  magra  fome  , 


CANTO  I.  45 

A  pobreza ,  a  miséria  as  mãos  mirradas , 
E  empunha  entre  ellas  impia  fouce  a  morte. 
Mas  ouve  o  Cco  as  preces  dos  cultores  , 
£  justo  recompensa  os  seus  trabalhos. 

Ja  no  campo  as  espigas  ondeando 
Figurão  hum  mar  de  ouro ,  a  branda  palha 
Amarella  se  mostra,  o  grão  condensa 
O  lácteo  sueco;  he  tempo  de  cortá-lo , 
Antes  que  muito  secco  o  rijo  Eolo 
E  a  mão  do  ceifador  por  terra  entornem 
O  fructo ,  rola  a  espiga.  Oh  flava  Ceres, 
Vem  tu  mesma  guiar  os  ceifadores, 
Empunha  a  curva  fouce  e  prostra  a  planta. 

Camponezes,  correi,  alai  os  molhos, 
Erguei-os  em  paveas  ,  que  dirijão 
As  espigas  ao  ceo,  útil  cautella 
Em  todo  o  tempo,  e  necessária  quando 
A  chuva  tem  molhailo,  ou  molha  os  trigos; 


|4"  GEORGICAS. 

E  tu ,  oh  guardador ,  prende  ás  carretas 

Os  forçosos  novilhos,  que  he  já  tempo 

De  transportar  os  pães ;  porem  evita 

A  força  do  calor  para  o  transporte, 

íeis  larga  então  mais  grãos  a  secca  espiga. 

Mas  já  do  fértil  campo  os  louros  molhos 
P  lavrador  tirou  ,  Ceres  o  corre 
Gostosa  de  lhe  achar  curta  resteva  , 
Igual  por  toda  a  parte  e  fornecida. 
Vamos  agora,  oh  Nize,  ver  as  eiras 
Onde  o  trigo  e  cevada  estão  em  medas , 
E  aonde  o  lavrador  contente  espera 
O  premio  e  recompensa  dos  trabalhos. 
Sobre  o  cume  de  hum  monte  percorrido 
Com  cyllndro  pesado,  ou  malho  forte, 
."ÇTnido  e  duro,  se  debulha  o  trigo. 

Eu  não  descreverei  ora,  oh  cultores, 
Machinas  próprias  a  empregar  nas  eiras , 


CANTO  I.  45 

Ou  seja  para  o  grão  despir  das  válvulas , 
Ou  para  o  separar  de  estranhos  corpos. 
Novos  trabalhos  minha  Musa  esperão  , 
E  de  outras  producções  eu  passo,  oh  Nize, 
A  narrar-te  as  vanlajens  e  a  cultura. 


CANTO  II. 


li  Ão  são  os  altos  muros  das  cidades , 
As  arcadas ,  os  pórticos,  os  templos, 
Os  palácios  dos  grandes ,  que  pintar-te 
Vai ,  oh  Niza  adorada ,  a  Musa  minha. 
Altos  colossos  de  tropheos  ornados , 
Erguidos  obeliscos,  de  que  inda  hoje 
Se  gloreia  o  Egypto ,  do  meu  canto 
O  assumpto  não  serão.  Pintar-te  eu  quero 
Do  singelo  cultor  modesto  asjlo , 
Qual  elle  deve  ser ,  simples ,  alegre 
£  próprio  ao  útil  fim  de  seus  trabalhos. 


48  GEORGICAS. 

Traçar-te  vou  os  commodos  apriscos, 

Os  sadios  curraes,  os  bons  celleiros, 

A  adega ,  onde  de  Baccho  os  suecos  fervem, 

Os  lagares  aonde  espuma  o  mosto, 

E  os  que  a  azeitona  com  esforço  espremera : 

E  ao  agradável  misturando  o  útil, 

Farei  que  flores  mil  em  torno  cresção, 

Fructos  de  alto  valor,  fresca  verdura, 

Que  do  colono  o  asjlo  aforraoseem. 

Quando  os  homens  errantes,  como  as  feras. 
Dos  fructos  do  carvalho  se  nutrião ; 
Quando  j  de  hum  arco  e  settas  sempre  armados 
Vivião  de  seguir  pelas  montanhas 
As  indómitas  feras,  ou  co'as  redes 
A«  aves  em  ciladas  apanhavão  , 
As  grutas,  as  cavernas  contra  as  chuvas, 
Contra  os  ventos  cruéis  e  contra  as  neves 
Erão  o  seu  abrigo  ;  sem  cuidado 
Sobre  o  futuro ,  á  nutrição  de  hum  dia 


CANTO  II.  49 

Votavão  d' esse  dia  o  só  trabalho. 

Errantes  na  extensão  dos  frescos  prados. 
Mais  pacificos  sob  as  leves  tendas, 
Os  primeiros  pastores  se  abrigarão. 
Sem  ter  fixa  a  morada ,  o  tempo  ,  os  pastos ; 
O  intVesse  dos  rebanhos  tão  somente 
Os  movia  a  acampar  e  a  retirar-se. 

O  cultor,  obrigado  a  viver  sempre 
Junto  ao  solo  que  arara,  a  defender-se 
Do  rigor  da  estação ,  e  a  pôr  seguras 
Das  injurias  do  ar  provisões  ganhas 
Com  fadiga  e  suor ,  foi  o  primeiro 
Que  levantou  asylo  permanente* 
Fixando  em  terra  despojados  troncos , 
Enlaçando-os  com  mais  flexiveis  ramos, 
Huma  cabana  ergueo ,  aonde  o  colmo 
Cobrio  filhos  e  esposa  :  ás  mesmas  rezes 
Hum  abrigo  erigio ;  mas  bem  depressa 
*  5 


5ò  GEORGICAS. 

A  chuva ,  o  vento ,  o  tempo  inexorável 

A  fraca  habitação  lançou  por  terra. 

Desde  então  os  humanos  trabalharão 
Em  cimentar  com  massas  pegajosas 
As  duras  pedras ,  em  formar  paredes 
E  mais  firmes  asylos;  finalmente 
Em  as  obras  compor  de  architectura. 
Aos  trabalhos  ruraes  indispensáveis. 

Tracemos,  Musa  minha,  pois  que  o  tempo 
Já  aos  homens  mostrou  de  que  maneira 
Deve  o  asylo  seu  ser  fabricado, 
Tracemos  da  morada  dos  cultores 
Quaes  devão  ser  a  exposição  e  as  partes. 

De  risonha  coUina  em  branda  encosta. 
De  Naiades  saudáveis  refrescada. 
Vizinha  a  hum  solo  grato  aos  pomareiros 
E  grato  aos  hortelões ,  onde  Pomona 


CANTO  II.  5i 

E  Vertumpo  floresção  com  vantajepi, 
Ditoso  te  contempla  se  pode'res 
Da  tua  liabitação  lançar  as  bases  j 
Longe  da  vizinhança  das  lagoas, 
Focos  de  corrupção ,  que  o  ar  vicião : 
Longe  dos  valles  húmidos  e  frios, 
Onde  hum  ar  nebuloso  pouco  a  pouco 
Da  vida  diminue  o  lume  escasso , 
E  o  saudável  vigor  aos  membros  lira  : 
Lugares  onde  os  tristes  habitantes 
Sobre  o  pallldo  rosto  impresso  trazem 
De  hum  clima  ingrato  o  desastroso  cunho: 
Onde  os  fracos  mortaes  languidos  sempre 
Não  lhes  he  dado  em  torno  á  frugal  mesa 
\er  assentar-se  a  prole  numerosa. 
Honra  das  cans ,  e  da  velhice  amparo, 
roje  lambem  de  hum  sitio  aonde  as  fontes , 
De  lympha  escassas,  no  calor  do  estip 
Recusão  aos  rebanhos  a  bebida , 
£  ás  hortas  e  pomares  a  frescurai^ 


5t2  GEORGICAS. 

Exposições  se  encontrão  desabridas. 
Que  se  devem  fugir ,  d'onde  lutando 
Em  viva  guerra  os  indomados  ventos  , 
Parecem  desterrar  a  prole  humana. 
Alli  as  tempestades  furiosas , 
Cos  troncos  mais  robustos  investindo, 
Os  derribão  por  terra;  alli  no  inverno 
Aquilão  regelado  ,  que  assobia  , 
Fere ,  opprime  o  cultor ,  oíFende  as  rezes 
E  á  morte  certa  o  seu  rebanho  entrega. 

HuMA  vez  escolhido  o  lugar  próprio , 
Com  methodo  começa  os  teus  trabalhos. 
De  hum  pequeno  cultor  o  pobre  asylo 
Não  iguala  dos  riccos  a  morada. 
Aquelle  que  pequenos  campos  ara, 
Menor  curral  precisa  e  menor  tecto. 
Menos  tendo  a  cobrir;  porem  a  ordem. 
Boa  disposição ,  util  limpeza, 
A  singela  elegância ,  necessárias 


CANTO  11.  55 

São  tanto  á  hiunilde  choça  dos  pastores 
Como  á  morada  do  colono  ricco. 
Cada  hum  proporciona  na  grandeza 
Os  edifícios  seus  aos  seus  trabalhos , 
Bem  como  ás  producções  das  terras  suas, 
E  hum  plano  regular  dirige  o  lodo. 

Ve  com  que  ordem  a  abelha  industriosa 
De  branda  cera  as  cellas  organisa , 
Com  que  ordem  junto  ás  limpidas  correntes 
O  castor  seus  asjlos  edifica , 
Com  que  cuidado  as  aves  amorosas 
Para  os  filhinhos  tecem  fofo  ninho 
Entre  os  ramos  das  arvores  copadas, 
E  no  seio  da  terra  as  previdentes 
Formigas  o  sustento  depositão 
Em  ordenadas  covas  resguardado. 

Quanto  folgo  de  ver  os  louros  trigos, 
Producto  da  cultura  cuidadosa  , 

5* 


54  GEORGICÂS. 

Em  liuni  limpo  celleíro  recolhidos; 

Pelo  ar  conservada  ao  grão  de  Ceres 

Seccura  e  fresquidão ,  com  que  elle  folga ; 

Bem  construídos,  branqueados  muros, 

Ao  rato  roubador  impenetráveis , 

Onde  fendas  não  ha  em  que  se  abriguem 

Os  malignos  insectos  roedores ; 

De  finas  redes  de  tecido  arame 

As  pequenas  janellas  guarnecidas, 

Com  caixilho  int'rior  de  rala  têa 

Que  vedar  possa  á  borboleta  a  entrada. 

Se  alli  por  vários  tubos,  te'  ao  meio 

Do  grão  amontoado ,  o  ar  circula , 

Em  perfeição  guardados  largos  annos 

Os  trigos  podem  ser ,  sem  que  os  ataquem 

Funestos  males  que  lhes  poupa  a  industria  , 

A  industria  mãi  fecunda  das  riquezas. 

Quantas  vezes  colheitas  abundantes 
De  trigos  e  cevadas,  que  aos  cultores 


CANTO  II.  55 

Dera  hum  terreno  grato  e  generoso , 
Quantas,  tenros  legumes  preciosos, 
Producto  de  fadigas  e  trabalhos. 
São  a  preza  do  rato  malfazejo , 
Chegão  a  corromper-se ,  ou  devorados 
N'hum  momento  se  vêm  por  mil  insectos  : 
Do  incauto  colono  penas  justas  ! 
Oh  quanto  irrita  o  Ceo  fatal  descuido^ 
Que  entrega  á  corrupção ,  que  perder  deixa 
Bens  ao  sustento  humano  destinados  ! 
Oh  quantas  vidas  da  miséria  ás  garras 
Poderião  roubar  somente  as  perdas, 
Que  a  van  preguiça  causa  aos  lavradores! 

Do  teu  suor  o  premio,  o  dom  dos  Numes 
Não  exponhas  por  tanto  a  aniquilar-se; 
Mas  segundo  os  teus  meios  ergue  ao  lado. 
Do  tecto,   aonde  habitas,  hum  celleiro  , 
Em  que  segura  tenhas  a  abundância. 
Dos  palheii  os  alli  também  levanta 


56  GEORGICAS. 

O  reparado  abrigo ,  aonde  aquelle 

Que  attenlamente  cuida  de  seus  gados, 

Provisão  guardará  de  palha  e  fenos, 

Sustento  necessário,  e  mais  que  todos, 

Ao  boi ,  como  ao  cavallo  proveitoso. 

D'alli  também  defende  com  cuidado 

A  entrada  ao  rato ,  que  de  hum  cheiro  impuro 

Infecta  as  provisões  que  não  consome, 

E  aos  mahgnos  insectos  ,  que  maculão , 

Det'riorão  dos  gados  o  sustento. 

Circule  o  ar  também  por  entre  os  fenos. 

Para  que  fermentando  não  se  accendão , 

Ou  percão  o  sabor  ás  rezes  grato. 

Para  evitar  fadigas  e  transportes , 
Sob  os  palheiros  os  curraes  coUocão 
Os  próvidos  agricolas ,  e  ás  grades 
Fazem  por  alçapões  baixar  os  fenos; 
Mas  para  conservar  aos  úteis  gados 
A  robustez,  vigor,  saúde  e  força 


CANTO  II.  57 

Faze-Ihes  respirar  húma  aura  pura , 
Praticando  aberturas  nas  paredes 
E  cobrindo-as  com  panos ,  que  no  estio 
Os  animaes  abriguem  das  picadas 
Dos  alados  insectos  importunos. 
Alli  aos  lassos  brutos ,  que  repousão , 
Espalhados  retraços  leitos  formão  , 
E  mal  que  a  fermentar  estão  dispostos, 
Passão  ás  covas  ,  d' onde  convertidos 
Sabem  em  gordo  adubo  para  os  campos. 
Desta  arte  o  lavrador  de  si  em  torno 
Os  edifícios  ergue  necessários  , 
Para  que  possa  a  todos  facilmente 
Seu  cuidado  estender  e  vigiá-los. 

Qual  abelha  rainha  em  torno  á  cella 
Espaçosa  e  real ,  manda  se  formem 
Por  toda  a  parte  os  bem  dispostos  favos> 
E  d'  alli  rege  o  povo  industrioso 


5S  GEORGICAS. 

Nos  diversos  empregos  e  trabalhos : 
Em  quanto  parte,  volitando  ao  longe, 
Extrahe  o  sueco  das  eheirosas  flores , 
Parte  prepara  o  mel  e  a  cera  branda : 
Humas  da  nova  prole  attentas  cuidão, 
Ou  mortos  corpos  do  cortiço  lanção  , 
E  o  resto ,  contra  os  zangãos  conspirado , 
Da  colónia  extermina  hum  fardo  inútil : 
Tal ,  digo ,  o  lavrador  dos  seus  cercado, 
Providente  os  trabalhos  distribuo , 
Banindo  o  ócio  da  industria  imigo. 
Alem  faz  conduzir  o  mato  ás  covas , 
E  ás  rezes  estender  hum  novo  leito ; 
Aqui  faz  padejar  de  hum  lado  ao  outro 
O  trigo  no  celleiro  amontoado  ; 
Humas  vezes  percorre  os  seus  palheiros, 
E  reparar  os  faz  das  frias  aguas ; 
Outras,  manda  abrigar  do  tempo  iroso 
Os  úteis  instrumentos,  que  descausão. 


CANTO  II.  59 

FoBÊM  cauto,  dos  vários  edifícios 
Em  isolar  cogita  as  varias  partes , 
A  fim  de  prevenir  do  incêndio  o  estrago. 
Une  da  natureza  a  simples  graça 
Com  as  obras  da  arte.  Oh  quanto  he  doce 
Aos  olhos ,  descansar  sobre  a  verdura 
Das  arvores  viçosas,  que  interrompem 
Aqui  e  alli  os  muros  branqueados  .' 
Quanto  agradável  a  frescura  e  sombra 
Das  verdes  copas  no  calor  do  estio , 
Quando  de  hum  puro  gaz  os  ares  enchem, 
E  huma  aura  impura  ( 1 6)  próvidas  embebem ; 
Na  primavera  mil  fragrantes  flores 
\er  pender  em  festões;  no  outono  os  frucloSj 
Gratos  ao  paladar,  colher  nos  ramos; 
Attrahidos  das  arvores  co'  a  sombra 
Os  mimosos  cantores  das  florestas 
Vem  alli  fabricar  os  brandos  ninhos  , 
E  mil  concertos  variados  soltão 
Em  torno  á  casa,  que  o  cultor  habita. 


fio  GEORGICAS. 

Por  isso  lie  que  elle  esplana  contra  os  muros 

Dos  edifícios  seus  diversos  troncos, 

Com  o  junco  e  c'o  vime  subjugados; 

Ou  seja  o  delicado  pecegueiro , 

Ou  seja  o  damasqueiro,  ou  a  gingeira, 

A  pereira  no  inverno  preciosa , 

O  limoeiro,  a  limeira,  que  se  adorna 

De  saborosos,  odorantes  fructos, 

A  vide  ,  de  que  pendem  doces  cachos. 

He  n'hum  asylo  tal,  oh  Nize  amada, 
Que  vê  na  doce  paz  correr  seus  dias 
O  que  isento  do  ócio  e  van  cubica , 
Faz  do  trato  rural  o  seu  estudo. 
Os  primeiros  humanos  imitando , 
Cultiva  cuidadoso  a  terra  grata  ; 
Se  lhe  lembra  deitar-se  á  fresca  sombra 
De  frondoso  carvalho  sobre  a  relva , 
Os  rios  brandamente  murmurando , 
As  aves  descantando  nas  florestas , 


CANTO  II.  61 

Tudo  o  convida  a  socegados  somnos. 
Se  não  queima  a  seus  pés  a  dependência 
Da  lisonja  o  incenso ,  se  o  não  cercão 
As  pompas  e  as  grandezas  ,  ao  seu  lado , 
Habita  a  doce  paz ,  vive  a  abundância. 

Do  diurno  trabalho  fatigado , 
Folga  de  ver  ao  descahi.  da   arde 
O  pastor ,  que  tocando  a  doce  avena 
As  ovelhas  conduz ;  no  cheio  tarro 
Aquelle  lhe  apresenta  o  branco  leite , 
E  a  esposa  os  niveos  queijos  e  a  coalhaida. 
Mais  tarde  os  lentos  bois  trazendo  assomão 
Reclinada  a  charrua  ao  jugo  presa ; 
Mugindo  alem  as  vaccas  criadoras , 
Dos  novilhos  seguidas  apparecem , 
Que  exp'rimentando  as  inda  ténues  forças^ 
Iluns  c'os  outros  era  luta  já  se  ensaião;, 
Os  rafeiros  c'o  gado ,  que  preservão 
Do  lobo  roubador,  no  pateo  entrando.^ 
*  6 


62  GEORGICAS. 

Lhe  vem  as  mãos  lamber,  e  em  torno  sallão^ 

Hum  recreio  innocente  finda  e  c'roa 
As  horas  destinadas  ao  trabalho; 
Depois  de  recolher  as  mansas  rezes , 
O  guardador,  ao  som  das  tesas  cordas. 
Cantando  dansa  em  gyros  co'  as  pastoras. 
Em  tanto  a  par  da  esposa  ,  rodeado 
Dos  tenros  filhos ,  lavrador  ditoso 
Ensinando-lhes  vai  co'  próprio  exemplo , 
Linguagem  expressiva ,  a  limitarem 
Os  desejos  a  gozos  innocentes, 
A  desprezar  o  orgulho ,  a  ambição  louca  , 
Oppostos  sempre  á  solida  ventura. 

NÃo  de  outra  sorte ,  quando  ao  som  sublime 
Das  lyras  de  ouro  ,  os  transportados  vates 
Da  prisca  idade  a  dita  descreverão, 
Os  quadros  seus  ornou  de  vivas  cores 
O  pincel  eloquente  da  verdade. 


CANTO  II.  63 

HtJM  tempo  houve  feliz  em  que  as  augustas 
Mãos  dos  Monarcas,  empunhando  a  esteva, 
Em  doce  paz  o  próprio  campo  ararão; 
Sem  mjiis  guarda  que  a  estima  de  seus  povos. 
Sem  mais  bens  que  a  virtude  e  o  seu  trabalho , 
Era  o  publico  bem ,  o  bem  da  pátria , 
A  dita  só ,  a  gloria  a  que  aspiravão. 

Mas  de  todo  mudou  da  terra  a  face  ^ 
Mal  que  a  soberba  com  maligno  influxo , 
Aos  delictos  no  mundo  abrio  entrada. 
Desde  então,  huns  dos  outros  inimigos, 
Os  animaes  a  terra  ensanguentarão ; 
Roubou  o  lobo  as  miseras  ovelhas; 
O  açor  empolgou  a  rola  fraca ; 
Contra  o  açor  a  águia  a  garra  adunc^ 
De  improviso  lançou,  e  p  lep^o  fero 
Nos  outros  animaes  cahio  faminto. 
Silvarão  pelo  campo  horriveis  serpe? , 
pestillando  mortiferos  venenos. 


64  GEORGICAS. 

Desde  então  se  fechou  da  terra  o  seio, 
E  em  vez  de  fructos  produzio  abrolhos. 
Os  rios  ,  das  barreiras  triumphando  , 
As  miseras  campinas  alagarão  ; 
Envolveo-se  de  luto  o  firmamento; 
Rebraraárão  trovões;  ardentes  raios 
Fulminarão  os  troncos  ,  e  tremendo  , 
Chammas  de  si  lançou  a  própria  terra. 

Forçoso  foi  então ,  que  os  mesmos  homen» 
Com  armas  huns  dos  outros  se  guardassem^ 
Foi  forçoso  cingir  de  espinhos  duros 
As  próprias  possessões;  em  toda  a  parte 
Se  leo  o  meu  e  o  teu,  e  em  toda  a  parte 
Do  meu  e  teu  perversos  inimigos 
Surgirão  á  porfia;  a  dura  força 
Da  Justiça  na  mão  tomou  a  espada. 

VoLVEo  do  tempo  a  lutuosa  roda , 
Mais  e  mais  as  desgraças  se  augmentárão. 


CANTO  II.  65 

Lá  do  seio  do  norte  congelado 
Barbaras  hostes,  inundando  a  Europa  , 
Toda  a  gloria  em  fereza  converterão. 
Virão-se,  oh  magoa  !  míseros  escravos 
Os  tristes  cidadões  livres  outr'ora ; 
Cobrio  Marte  de  horror  os  férteis  campos; 
De  guerreiro  apparato  rodeadas 
As  antigas  moradas  dos  colonos 
Em  formidáveis  torres  se  tornarão ; 
Perecerão  as  artes  agradáveis ; 
As  artes  úteis  igual  fim  tiverão  ; 
Os  colonos  vendidos  como  os  gados 
As  terras  para  os  Bárbaros  lavrarão; 
A  cultura  pasmou ,  morreo  a  industria. 

Ed  mesmo,  eu  mesmo  a  vi,  hórrida  imagem 
De  tempos  infelizes  I  vi  a  espada 
Nas  mãos  da  guerra  desolar  os  campos , 
Fugir  o  camponez  do  pobre  asylo 
ror  inimigos  braços  despojado. 

6* 


^6  CEORGICAS. 

Vi  a  fome  cruel.  Yi....mas  que  horrores 

Te  pinto  ,  oh  Nize !  he  tempo  em  que  deixando 

Tristes  scenas,  que  o  Ceo  punindo  crimes , 

Ao  mundo  apresentou,  retome  a  avena, 

E  voltando  ao  assumpto  que  deixúra. 

Os  celleiros  de  Baccho  te  descreva» 

De  Phebo  p  ardente  olhar,  que  os  louros  cachos 
Assucarados  torna  e  preciosos , 
Quando  ainda  pendentes  da  videira 
De  pâmpanos  viçosos  se  çoroão, 
He  ao  licor  da3  uvas  espremido 
De  hum  eíFeito  fatal ;  milhões  de  vezes 
Hum  vinho  ,  que  sem  pejo  se  oífrecêra 
Do  divinal  Olympo  a  par  do  néctar, 
Em  hum  lugar  exposto  á  calma  ardente , 
Em  azedo  vinagre  se  converte. 

De  Naxo  nas  montanhas,  que  povôão 
Por  toda  a  parte  verdejantes  cepas , 


CANTO  II.  67 

Huma  gruta  se  vê  de  toscas  penhas; 
De  hum  lado  e  outro  crystallínas  fontes , 
Brandamente  sahindo  de  entre  as  lapas 
Sussurrão  com  doçura ;  as  lentas  vides 
De  ApoUo  aos  raios  com  viçosas  folhas 
A  entrada  impedem ,  e  subindo  ao  cume 
Dos  alamos  frondosos  que  a  guarnecem, 
Pendera  em  mil  festões  por  toda  a  parte. 
Huma  relva  mimosa  e  sempre  verde  , 
De  varias  ,  lindas  flores  esmaltada  , 
Lhe  forma  o  pavimento  :  alli  da  calma 
Jamais  penetra  a  força ,  hum  ar  suave 
De  continuo  tcmp'  rado  se  respira 
Entre  as  heras ,  que  a  par  das  negras  bagas 
Mostrão  lustrosas  folhas  sempre-verdes. 
No  mais  profundo  d' este  fresco  asylo 
Guarda  o  ébrio  Sileno  o  doce  mosto, 
Seu  amor ,  seu  desvelo  e  seu  cuidado. 
Esculpidas  estão  na  penedia 
As  insignes  \ictorias  do  Thebano, 

6 


^8  OEORGICAS. 

Quando  tirado  por  malhados  tigres , 
Entre  o  bando  das  fervidas  Bacchantes, 
A  Ásia  sujeitou,  e  em  vez  de  lança 
Na  dextra  maneava  hum  verde  thjrso. 
Tão  após  o  seu  carro  fohando 
Os  Satjros  galhudos  e  os  caprinos 
Faunos  de  verdes  heras  enramados. 
Cem  amphoras ,  que  ainda  aroma  exhalao , 
Cem  torneados  vasos  e  cem  pelles 
Pela  gruta  esparzidas  se  devisão. 
Imitemos  Sileno  em  seus  cuidados; 
Seja  o  seio  da  terra  quem  resguarde. 
Os  suecos,  que  nutrira  a  superfície. 

HuMA  adega  na  terra  sepultada 
Conserva  em  todo  o  tempo  utU  frescura. 
As  melhores  madeiras  alli  formem , 
Pelas  cintas  de  ferro  subjugadas, 
Capazes  vasos ,  que  o  licor  contenhão. 
Alli  as  celhas ,  dornas  ,  quartos ,  pipas 


CANTO  II.  69 

Devem  sempre  abundar,  e  finalmente 
Será  perfeita  adega ,  cm  que  sahindo 
O  mosto  de  hum  lagar  mais  alto  que  ella , 
Por  canaes  aos  toneis  he  conduzido. 

Sob  a  pressão  de  fortes  parafusos , 
Da  uva  escorra  o  sumo  assucarado, 
E  fermente  nas  cubas  sempre  limpas 
O  rúbido  licor  de  roxos  cachos. 
Da  cava  no  mais  fundo  em  transparentes 
Botelhas  seja  posto  com  cuidado 
O  bacchico  licor  que  a  rolha  fecha , 
E  co'  lapso  do  tempo  se  melhora. 

Assim  para  apurar  os  dons  de  Evous 
Forme  o  hábil  cultor  as  oíRcinas 
Junto  do  tecto  seu;  assim  eleve 
Solicito  almazens,  em  que  recolha 
Da  arvore  de  Palias  a  coltieita. 
Mas  nas  margens  de  hum  rio,  ou  de  hum  regalo 


7  o  GEORGICAS. 

Aproveitando  da  agua  útil  esforço, 
Forme  o  lagar,  aonde  as  fortes  galgas 
Esmaguem  a  azeitona,  e  onde  a  imprensa 
O  óleo  precioso  d'ella  tire. 
Porem  empregue  aqui  todo  o  cuidado  , 
E  sem  poupar  trabalhos  nem  fadigas, 
Huma  oílicina  tal  limpa  conserve. 
Mas  he  já  tempo ,  oh  Nize ,  que  deixemos 
Do  agrícola  a  morada ,  e  sobre  as  azas 
Da  minha  Musa,  que  incessante  voa. 
Vem  o  terreno  ver  que  em  torno  a  cerca. 

Alli  verás  primeiro  em  canaes  vários 
A  lympha  em  tortos  regos  serpejando, 
Os  lagos  procurar,  onde  pintada 
A  abobada  celeste  se  devisa, 
D'  onde  de  Phebo  os  reflectidos  raios 
A  cem  partes  di\  agão  inconstantes , 
E  d'  alli  sabiamente  repartida 
Levar  por  toda  a  parte  útil  frescura , 


CANTO  II.  71 

Matando  a  sede  ás  sequiosas  plantas. 

Veras  não  longe  as  esplanadas  arvores 
Com  symraetricos  ramos  revestindo 
Os  muros  d'esta  sorte  embelezados. 
N'outra  parte ,  deixados  á  natura , 
Verás  os  troncos  de  sombrios  bosques, 
Que,  elevando-se  ás  nuvens,  alardêão 
A  natural  beileza  e  liberdade. 
AUi  terás  na  fresca  primavera 
Das  flores  variadas  a  fragrância , 
Sombra  e  frescura  no  calmoso  estio  ^ 
£  no  outono ,  no  vime  entrelaçado 
Os  fructos  colherás  de  mil  sabores. 

Allt  a  triumpbante  mão  da  arte 
Fará  criar  no  marmeleiro  acerbo 
A  pêra  saborosa  ;  a  amendoeira 
Nutrirá  com  seu  sueco  os  grossos  pomos 
Do  pecegueiro  e  as  rosadas  flores ; 


72  GEORGICAS. 

Pondo  de  parte  o  abrunheiro  agreste 
A  selvagem  fereza,  presta  os  suecos 
A  branca ,  ou  rubra  ameixa  delicada ; 
E  conservando  a  robustez  antiga , 
Dócil  ás  mãos  da  arte ,  ufano  brilha 
Dos  adoptivos  fructos  carregado. 

Exulta  o  pomareiro ,  que  mettendo 
Em  hum  tronco  selvagem ,  que  rachara , 
De  hum  cultivado  ramo  huma  vergontea , 
A  casca  unindo  á  casca,  o  lenho  ao  lenho, 
Ou  na  fendida  pelle  introduzindo 
A  fechada  borbulha,  ou  finalmente 
C'o  habito  fixt'rior  de  hum  fértil  ramo 
Outro  ramo  vestindo  agreste  e  forte, 
Só,  com  sua  arte,  úteis  prodigios  cria. 
Tanto  pode  ampliar  os  próprios  gozos 
A  industria  dos  mortaes ,  quando  a  exp'riencia , 
Mestra  das  artes ,  fielmente  os  guia  ! 


CANTO  II.  '  73 

Es  tu,  sim  tu,  fecunda  natureza, 
<^ue  inspiras  aos  mortaes  as  varias  artes ; 
Tu  que  nos  densos  bosques  solitários 
De  hum  tronco  ao  outro  as  braças  reuniste 
Em  natural  enxerto ,  tu  que  ás  vezes 
Dás ,  unindo  indivíduos  separados , 
A  dois  diíF'rentes  lenhos  huma  copa. 
Examinemos  pois ,  oh  lavradores , 
A  marcha  pesquizemos  da  natura , 
Que  só  pode  guiar  nossos  trabalhos  : 
Económica ,  sabia  e  providente 
Nada  lhe  falta ,  nada  fez  inútil ; 
Ao  contrario ,  se  a  arte  presumpçosa , 
Transgrede  a  sua  lei ,  miséria  e  morte 
O  castigo  serão  da  audácia  sua. 
Assim  o  regetal,  que  mão  ousada 
Da  vertical  raiz  tem  despojado , 
A  pezar  dos  cuidados,  dos  desvelos, 
Jamais  chega  a  contar  extensa  vida. 
Plantemos  pois ,  oh  Nize ,  os  férteis  troncos 

7 


74  GEORGICAS, 

Taes  quaes  a  mãi  commum  propicia  os  cria ; 

Para  que  á  sombra  delles  nossos  netos 

A  mão  bemcligão,  que  formar-lhes  soube  - 

Estes  dóceis  copados  de  verdura, 

Estes  focos  de  fructos  saborosos. 

Plantemos  inda  no  terreno  próprio 
Com  ordem  cada  arvore;  de  hum  lado 
As  mais  fracas  se  vejão ,  de  outro  as  fortes ; 
De  hum  as  que  a  folha  largão ,  de  outro  aquellas , 
Que  possuindo  eterna  mocidade, 
Huma  viçosa  folha  sempre  adorna. 
Tu  vem  primeiro,  lá  da  Arménia  fructo , 
Damasco  saboroso ,  fino  e  bello , 
E  nas  tuas  espécies  variado  , 
Occupar  hum  terreno  nutriente, 
Leve  e  fino ;  jamais  cortante  ferro 
As  braças  te  mutile ;  em  liberdade 
Estende  em  torno  a  ti  fecundos  ramos. 


CANTO  IL  75 

Feliz  o  que  enxertando  Ifgneo  tronco, 
No  lugar  mesmo  em  que  a  semente  o  dera. 
Nesse  mesmo  lugar  seus  fructos  colhe  : 
Os  seus  vindouros  bemdirão  seu  nome, 
E  o  tronco  prezarão ,  que  assim  criara. 
N'um  igual  solo  ,  oh  Nize ,  plantaremos 
Com  desvelo  o  mimoso  pecegueiro 
Podado  attentamente ,  e  contra  os  muros 
Preso  com  arte  em  regular  figura ; 
O  tronco  das  vermelhas  azarolas 
Dará  na  primavera  as  liadas  flores^ 
Em  cachos  agradáveis,  e  no  outono 
Virão  orná-la  os  agrodoces  fructos. 
Ça  gingeira  o  estio  os  dons  sazona 
Como  os  da  cerejeira ,  e  colheremos 
As  avelans ,  que  dobre  casca  envolve. 

A  cerejeira  aoia  o  calcí^riç  asseata^ 
Assim  como  a  ginigeira^  e.pelo  enxerto. 
Mais  que  pela  semente  prompta  cresce. 

7 


^G  GEORGICAS. 

.A  aveleira  em  terreno  fresco  e  solto , 
Das  sementes  nascida ,  dará  fructos , 
E  ás  melhores  ameixas,  aos  abrunhos. 
Paremos  no  vergel  lugar  distincto. 

Provendo  á  estação  fria  em  que  cerradoç 
Os  thesouros  fecundos  de  Pomona , 
Nem  se  quer  a  verdura  os  vergéis  orna , 
A  maceira  de  espécies  variadas 
Que  se  c'  roa  de  doces  e  agros  pomos 
Plantaremos  nos  altos  com  vantajem. 
As  diversas  pereiras  ,  que  alim então 
fructos  em  toda  a  quadra  preciosos 
E  de  duração  longa ,  sobre  o  tronco 
Da  sua  espécie  de  semente  vindo , 
Ou  sobre  o  marmeleiro  enxertaremos ; 
Arvore  dócil  que  obedece  á  forma. 
Que  ao  pomareiro  agrada ,  e  ora  reveste 
Seus  muros  de  verdura  ,  ora  se  eleva 
livremente  no  ar ,  e  até  em  leque 


CANTO  II.  77 

Forma  paredes  de  agradáveis  ruas. 

A  figueira  creadora  de  frescura, 
O  marmeleiro,  que  fornece  os  pomos 
A  arte  do  copeiro ,  e  os  bellos  troncos 
As  enxertias;  a  arvore  a  que  outrora 
De  Pyramo  tingio  o  sangue  o  fructo  j 
A  uva  espim ,  o  pirliteiro ,  a  çarça 
Emulas  brilharão  no  pomar  nosso. 
Mas  na  parte  dos  ventos  abrigada 
Ostentará  a  par  das  verdes  folhas 
Os  áureos  pomos  e  fragrantes  flores 
A  laranjeira  j  dos  succosos  fructos 
Se  ornará  a  limeira  preciosa , 
A  par  do  limoeiro  azedo  e  doce. 

Por  entre  os  vários  troncos  repartida 
Murmurará  a  lympha  branda  e  clara  , 
Necessária  frescura  derramando. 
No  outono ,  sabia  mâo ,  de  inúteis  braças 

7*' 


7»  GEORGICAS. 

Despojará  as  arvores  ,  e  attenta 

Na  doce  primavera  os  curtos  garfos 

Nas  fendas  metterá  dos  novos  troncos, 

Ou  nas  abertas  cascas  as  borbulhas , 

E  com  o  próprio  unguento  (17)  humedecido 

As  chagas  cobrirá  das  plantas  suas. 

Também  as  frescas  aguas,  que  dimanão 
Da  risonha  coUina ,  indicar  devem 
A  horta ,  onde  as  mimosas  hortaliças 
Cobrem  a  terra,  e  onde  a  industria  e  a  arte 
Se  prezão  de  nutrir  succosas  plantas  , 
Da  natura  os  esforços  ajudando. 
Alli  do  hortelão  mão  cuidadosa 
Para  as  aguas  reger  canteiros  forma 
Tirados  ao  cordão ,  pequenas  ruas 
Para  o  transporte  dos  adubos  deixa , 
E  serviço  das  plantas.  Alli  cresce 
Repolho  tenro,  couve  delicada, 
A  branca  alface ,  o  nabo  turbinado  ,(18) 


CANTO  II.  79 

Babão  picante,  betarraba  doce; 
Enroscando-se  alli  pelas  latadas 
O  feijão  tem  pendente  a  branda  vagem ; 
Cresce  o  espinafre,  a  varia  ervilha  cresce; 
O  alho ,  a  cebola  sob  a  terra  engrossão ; 
A  verde  salsa,  o  manjericão  verde, 
O  coentro,  a  tufada  pimpinella. 
Melancias  aquosas,  e  fragrantes 
Melões  assucarados,  os  pepinos  , 
As  abob'ras  de  espécies  diíTerenles, 
Beringelas ,  cenoiras ,  rabanetes , 
Os  espargos,  mastruços,  alcachofras 
Abundão  nos  canteiros  espalhados. 

Nunca  alli  faltão  variadas  plantas 
Que  sustento,  ou  regalo  ao  cultor  prestem; 
A  que  teme  o  calor,  continuamente 
He  pelas  frias  aguas  refrescada, 
E  aquella  a  quem  a  neve  e  o  frio  assusta , 
O  hortelão  cuidadoso  ^fa  torno  a  abriga. 


8  o  GEÔRGICAS. 

A  toda  a  parte  leva  o  grato  adubo 

Do  pequeno  carrinho  a  leve  caixa; 

O  sacho  sem  descanso  não  perdoa 

As  más  hervas,  que  em  torno  ás  plantas  nascem. 

O  cultor ,  que  he  de  meios  abundante , 
Para  o  seu  gozo  alli  as  ruas  orna 
Dos  verdes  buxos  e  de  murta  verde , 
A  tesoura  cortados ,  da  cheirosa 
Baixa  alfazema,  ou  teixo  á  vista  grato. 
Do  nardo,  ou  dos  arbustos,  que  mais  ama. 
O  morango  estolhoso  (19)  alli  floreçce; 
A  reptante  (20)  hortelan ,  a  segurelha, 
A  manjerona,  a  azeda,  a  bergamota, 
A  chicória  no  fértil  solo  crescem  ; 
O  tomateiro ,  o  pimentão  verdejão 
Vaidosos  com  os  fructos  purpurinos 

NÃo  cantarei,  oh  Nize,  os  dons  de  Flora, 
O  trato  dos  jardins ,  nem  o  suave 


CANTO  II.  S^ 

Grato  cheiro  das  flores.  Vós ,  oh  Nymphas , 
Com  ellas  enastrai  as  tranças  de  ouro  ; 
Com  ellas  vos  ornai  em  mil  grinaldas 
Nos  dias  festivaes ,  jovens  pastores. 
Pompas  da  natureza ,  vós  oh  thalamos  , 
Dos  vegetaes  amores ,  vossas  graças 
Sejão  cantadas  por  mais  dignos  vates. 
Nem  porei  meu  cuidado  em  descrever-te 
As  estufas ,  aonde  o  vidro  encerra 
Da  zona  ardente  os  saborosos  fructos  , 
Ao  gozo  do  opulento  destinados; 
Foi  assaz  liberal  para  com  nosco 
De  bens  a  natureza ;  que  outrem  busque 
Appropriar-se  o  luxo  ,  que  ella  em  parte 
Dco  a  outros  paizes  e  outros  climas. 
Mais  grosseiros  trabalhos  e  mais  úteis 
São  a  nossa  partilha  ,  oh  lavradores  ; 
E  para  me  adornar  a  agreste  fronte 
Que  o  ar  e  o  sol  nos  campos  tem  crestado  , 
Oh  Nize ,  prezo  mais  do  que  as  tulipas 


82  GEORGICAS. 

A  c'roa,  que  de  myrtos  me  formaste, 

Nas  verdes  balsas  por  tua  mão  colhidos» 

NÃo  deixarei  porem  no  esquecimento 
As  tenras  aves  ,  que  o  cultor  sustenta , 
E  que  a  habitação  sua  embelezando 
Seu  pequeno  cuidado  recompensão. 
Companheiras  do  agricola ,  o  meu  canto 
Vinde  agora  escutar ,  vós  a  quem  cabem 
Os  trabalhos  domésticos  em  sorte. 
Attentas  vigiai  dos  brancos  ovos 
A  lenta  incubação ,  e  aos  tenros  pintos 
Distribui  a  varia  alimpadura 
Que  no  crivo  passou  ,  ou  o  quebrado 
Grão  do  milho;  ás  gallinbas,  e  aos  nadantes 
Alvos  patos  ,  as  hervas ,  e  mãos  fructos 
Cozidos  preparai,  como  aos  vaidosos 
Gordos  perus,  na  infância  delicados; 
O  vizinho  pombal  de  Cypria  as  aves 
Ço'  a  tenra  prole  sem  cessar  povoem  ; 


CANTO  II.  83 

Gozem  todas  no  abrigo  co'  a  limpeza 
De  hum  trato  regular,  de  huma  aura  pura. 

Tenho-te,  oh  Nize  minha,  desenhado 
O  asylo  do  cultor.  He  tempo  agora , 
Que  hum  momento  de  parte  os  pincéis  pondo, 
Interrompa  o  trabalho  e  deixe  a  avena; 
Hum  vasto  campo  inda  a  correr  me  resta. 
Mas  se  hum  só  olhar  teu  me  recompensa , 
Não  temas }  Nize,  de  correr  que  eu  canse. 


^<»'*'*-'%(V<*»/V^^'*^-^'*  'V^'V%^ '*/%'»•%/*  f»*.-*»»-»^!»/»^ /%/%.■% ^/%/^,.^,,^, 


CANTO  iir, 


Deixemos,  minha  Nize,  o  ledo  asylo 

Do  ditoso  colono,  abandonemos 

As  plantas  annuaes  e  os  seus  trabalhos; 

Deixemos  as  lavouras  repetidas 

De  que  o  trigo  carece ;  pois  ferindo 

Palias  a  terra ,  de  seu  seio  eleva 

Os  pacificos  ramos  a  oliveira. 

Oh  arvore  infeliz,  ricco  thesouro 

Do  ingrato  lavrador  dos  Lusos  campos, 

Já  começo  a  cantar- te,  e  em  teu  soccorro 

Vou  chamar  a  razão ,  e  levantá-la 

Sobre  as  azas  da  simples  harmonia. 


86  GEORGICAS. 

Tu,  Deosa  das  sciencias  e  das  artes, 
Ora  a  cantar  me  ajuda  o  teu  triumpho , 
O  tronco ,  que  venceo  com  seus  thesouros , 
O  soberbo  animal ,  que  o  Deos  das  ondas 
Qual  hum  raio  sahir  fez  do  oceano , 
Soltas  ao  ar  as  ondeadas  clinas. 
Erguido  o  collo ,  e  chammas  respirando. 

Ouvi-ME ,  oh  lavrador,  deponde  os  erros 
Que  a  antiga  usança  sem  cessar  consagra; 
A  mão  calosa  do  severo  tempo 
Erige  em  leis  os  mais  cruéis  abusos, 
E  o  vulgo  respeitoso  abate  a  fronte 
Perante  os  erros  da  remota  idade. 

Là  nos  incultos  solitários  campos, 
Onde  não  entra  da  charrua  o  ferro , 
Filho  da  natureza  e  d'ella  alumno, 
Se  reproduz  o  forte  zambujeiro ; 
Nascido  da  semente  derramada 


CANTO  III. 

Em  hum  terreno  próprio ,  té  ás  bordas 
Do  negro  ab  smo  a  longa  raiz  lança 
Vertical  e  robusta ;  doesta  sahem 
Forçosos  ramos,  que  o  terreno  ao  longe 
Rompendo  abração,  adornados  sempre 
De  nutrientes  capillares  {21)  ténues; 
Tardo  em  crescer,  na  duração  parece 
Kival  da  eternidade ;  alçando  a  fronte  > 
Zomba  do  vento,  ri  das  tempestades, 
E  de  folhas  se  cobre  verdejantes. 
A  profunda  raiz,  que  em  terra  desce, 
O  sustenta  e  vigora*  quando  a  culta 
Oliveira,  provinda  já  dos  ramos, 
Já  das  raizes,  he  mais  fraca  e  débil. 
Teme  o  rijo  aquilão,  teme  as  procellas, 
£  do  tempo  não  zomba  tão  vaidosa. 

Tu  pois ,  a  quem  propicia  amiga  sorte 
Deo  de  taes  troncos  em  partilha  a  copia. 
Com  mão  impía  a  terra  não  despojes 


88  GEORGICAS. 

D'este  thesouro ;  mas  cortando  os  ramos , 
O  caule  (22)  poupa,  e  inserindo  n'elle 
Novas  vergonteas ,  hum  olival  preza 
De  todos  o  melhor  e  o  mais  robusto. 

Oh  .•  quanto  folgarião  nossos  netos , 
Se  em  alinhados  renques,  pelas  terras, 
Para  seu  bem ,  lançássemos  prudentes 
D'azeitona  os  caroços !  Se  imitando 
Das  aves  a  lição  (23),  em  largas  dornas 
Co  pingue  adubo  e  co'a  arenosa  terra 
Accelerando  a  força  germinante , 
Vencesse  a  arte  a  tarda  natureza ; 
E  co'  a  cultura  hum  olival  surgisse 
De  robustez,  de  duração  eterna' 

Porem,  depois  que  a  industria  e  que  os  cuidados 
Dos  próvidos  mortaes  aos  campos  cultos. 
Aos  terrenos  movidos  e  adubados 
Trouxerão  a  oliveira,  esta  apresenta 


CANTO  III.  89 

Hum  numero  de  espécies  segundarias 
Distinctas  e  diversas;  humas  lanção 
Mais  cedo  a  flor,  mais  cedo  de  seus  ramos 
Maduro  pende  o  fructo ;  em  quanto  as  outras 
Mais  tardas ,  com  aquellas  não  florescem 
Nem  fructificão ;  n'uma  parte  ostenta 
Brilhante  negro  o  fructo,  n' outra  a  fina 
Pelle,  que  o  cerca,  hum  verde  claro  mostra; 
Ou  tem  os  fructos  cor  avermelhada, 
Diversos  na  grandeza  e  qualidade , 
Nas  formas ,  e  nas  cores.  A  humas  d'ellas 
Hum  solo  convém  mais  e  mais  hum  clima ; 
Ou  seja  que  os  abrigos  as  mais  tenras 
Mais  perfeitos  exijão  ;  ou  que  ainda 
Os  princípios  que  a  seve  lhes  fornece 
De  cada  espécie  á  criação  convenhão 
Diversamente.  Oh  quanto  útil  seria 
Que  o  lavrador  a  espécie  conhecesse , 
Que  prospeVa  melhor  no  seu  terreno  , 
E  que  hum  mesmo  olival  fosse  habitada 


90  GEORGICAS. 

Por  individues  de  huma  mesma  espécie ! 

Seria  então  igual  era  tudo  o  trato , 

A  florescência  igual ,  igual  colheita  , 

E  o  fructo ,  a  hum  mesmo  tempo  amadurando, 

Por  igual  fornecera  hum  puro  azeite. 

Sem  attenção  jamais  prosperar  pode 
Trabalho  humano;  da  razão  dotado 
Estuda,  oh  lavrador,  observa  e  pensa. 
Porem  envolta  em  condensadas  nuvens, 
E  cercada  de  horrenda  escuridade 
Triste  ignorância  habita  em  nossos  campos. 
Jazem  na  indolência  sepultados , 
Entregues  ou  ao  ócio  ,  ou  aos  prazeres , 
No  luxo  consumindo  os  opulentos 
Os  bens ,  que  o  lavrador  com  suor  ganha. 
De  telas  de  ouro  os  aposentos  cobre 
O  habitanlç  inútil  das  cidades , 
E  hum  triste  colmo  mal  do  tempo  abriga 
Do  pobre  lavrador  a  humilde  choça. 


CANTO  III.  91 

Piada  desperta »  nada  anima  a  industria. 
Na  miséria  e  desprezo  abandonado 
O  lavrador  prosegue  na  ignorância , 
E  movido  somente  pela  força 
De  hum  triste  necessário  ,  sem  desvelo. 
Como  o  pai  cultivou,  cultil^a  o  filho. 

FtJNiSTos  erros  !  Deperece  em  tanto 
A  oliveira  tarda  em  crescimento; 
Cobre  o  mato  os  terrenos  mais  fecundos; 
No  fértil  valle  o  junco  estéril  cresce; 
Despovoão-se  as  miseras  aldeãs , 
E  exhaurida  a  nação,  vê  sem  recurso 
Faltar-lhe  a  força ,  e  qual  o  corpo  enfermo , 
A  quem  fatal  moléstia  entorpecera , 
Cahe  sem  vigor ,  e  apenas  com  trabalho 
Sobre  a  terra  se  arrasta :  assim  privada 
Do  espirito  vital  da  agricultura  , 
A  sociedade  languida  ,  perdida 
^  energia  e  a  força,  oífrece  o  collo 


gi  GEORGICAS. 

Ao  jugo  alheio ,  que  evitar  não  soube; 
Ou  compra  com  torrentes  de  seu  sangue 
Aquella  independência,  que  poderá 
Com  pacifica  industria  ter  guardado. 

Dos  humanos  s(  solida  riqueza 
líâo  jaz  do  Potosi  no  metal  fulvo. 
Nem  na  pérola  india,  ou  mexicana  , 
Nem  no  diamante  de  que  abunda  o  Ganges; 
Mas  venturoso  he  sim  aquelle  Estado 
Ricco  de  braços,  de  provisões  ricco. 
Aonde  a  fouce  nas  searas  cansa, 
E  que  dos  bens  reaes  que  nutre  e  cria  , 
Ao  longe  vai  levar  a  extrema  copia. 
Porem  té  onde ,  oh  Musa  ,  o  voo  elevas? 
Ah?  deixa  o  campo  azul,  que  altiva  fendes, 
A  mais  expertos  vates ;  volve  aos  bosques , 
Faze  outra  vez  ouvir  do  fértil  tronco 
De  Minerva  qual  seja  o  próprio  trato. 


CANTO  Ilíi  93 

A  próvida  natura ,  comparando 
A  vida  do  cultor,  c'  o  crescimento 
Moroso  da  oliveira  semeada , 
Quiz  que  a  mão  que  plantou ,  guardar  podesse 
A  esp' rança  de  colher  hum  dia  os  fructos, 
E  á  arvore  pacífica  mil  meios 
Deo  de  reproducção ,  deixando  á  industria 
Livre  entre  elles  a  escolha.  Já  na  terra 
São  as  braças  mettidas ,  e  vegetão  , 
Crião  raízes ,  desenvolvem  folhas , 
Mais  que  tudo  se  a  braça,  que  he  plantada, 
Se  eleva  muito  pouco  sobre  a  terra; 
Já  se  plantão  os  nós  proeminentes 
Cortados  das  raízes;  delles  brotão 
Bastas  vergonteas,  entre  as  quaes  escolhe 
O  próvido  cultor  a  que  he  mais  bella; 
Já  da  casca,  que  esconde  as  cicatrizes 
Dos  rebentões  cortados,  se  aproveita., 
E  mettendo-a  no  solo  ,  vê  com  gosto 
A  arvore  crescer ;  ou  J9Í  protege. 


94  GEORGICAS. 

Contra  o  dente  do  gado  as  tenras  hastes^ 

Que  brotão  da  raiz  ligada  ao  tronco. 

Porem,  filhas  da  arte,  he  só  com  arte 
Que  podem  prosperar  aquellas  plantas. 
E  se  a  grande  oliveira  teme  o  sopro 
Do  aquilo  gelador ,  cora  maior  causa 
O  teme  a  joven  arvore,  que  apenas 
Tem  lançado  raiz.  Hum  tronco  herbáceo  (24) 
He  ao  principio  o  seu :  fraca  e  delgada 
Precisa  de  attençoés  e  de  desvelos. 
Hum  terreno  fecundo,  solto  e  leve. 
Que  mantém  o  calor  co*a  aréa  fulva , 
E  aonde  possão  crystallinas  aguas 
A  frescura  levar  de  quando  em  quando, 
Ao  viveiro  convém.  AUi  plantados 
Os  novos  ramos ,  a  crescer  começão 
Do  colono  as  futuras  esperanças. 

Vos ,  oh  Dryades  tenras ,  que  ligadas 


CANTO  III.  g5 

Aos  novos  troncos  ,  receais  seu  dano» 
Ah  protegei-os  contra  as  neves  frias  ! 
Inspirai  ao  cultor  que  abrigue  as  plantas. 
Que  o  terreno  lhes  mova ,  que  apertarão 
As  torrentes  das  nuvens  despedidas. 
Benigna  Palias,  tu,  do  lugar  onde 
Se  educa  o  tronco ,  que  adoptaste  outrora , 
Para  bera  dos  mortaes  benigna  afasta 
O  dente  roedor  do  voraz  gado  5 
Faze  cingir  de  balsas  espinhosas 
O  viveiro  precioso,  e  lá  do  Olympo 
Protege  dos  colonos  os  trabalhos. 

E  tu,  grato  dos  numes  aos  favores, 
Assiduas  attenções,  colono  ,  emprega  ; 
Se  da  raiz  plantada,  juntamente 
Brotão  diversos  ramos,  pouco  a  pouco 
Cuidadoso  os  supprime;  olhando  attenlo 
Que  o  numero  excessivo  jamais  roube 
A  seve  ao  que  algum  dia  irá  dos  campos 


96  GEORGICAS. 

Povoar  a  extensão  ;  e  ao  mesmo  tempo 

Alguns  conserva ,  que  tolhendo  o  excesso 

Dos  suecos  no  maior ,  o  mal  lhe  poupem 

De  hum  prematuro  augmento ,  até  que  o  tempo 

Lhe  dê  a  firme  e  lignea  consistência. 

Não  tenhas  pois  desejo  perigoso 

De  ver  em  breve  os  troncos  elevados, 

Mas  espera  pacifico,  e  retira 

Os  baixos  rebentões ,  quando  o  mais  alto 

De  todo  a  mão  te  encher  com  que  o  abraças. 

Quando  a  planta  ,  a  final,  houver  chegado 
A  huma  grossura  própria ,  então  desponta 
A  guia  vertical ,  para  que  a  seve 
Aos  lados  volva ,  e  vá  formar  os  ramos. 
Supprime  então  de  todo  as  mais  vergonteas, 
Roubadoras  de  suecos ;  bem  depressa 
Ramos  e  tronco  á  proporção  chegados, 
A  infância  terminou  da  arvore  tua  : 
He  tempo  que  ella  passe  aos  largos  campos, 


CANTO  III. 
E  que  nelle5  te  pague  em  riccos  fructos 
Os  assíduos  cuidados  que  lhe  deste. 

A  oliveira  vegeta  em  todo  o  solo  ; 
Em  extremo  vivaz ,  só  se  arrecêa 
Do  frio  gelador;  he  pois  o  abrigo 
Conveniente  ao  campo  onde  a  plantares. 
Sobre  o  cume  escarpado  de  altos  serros 
Onde  o  frigido  vento  assopra  as  neves , 
Por  mais  grato  e  melhor  que  seja  o  solo, 
Jamais  se  elevará  verde  oliveira. 

Rivais  do  Atlante,  vós  erguidos  montes, 
Desabridas  montanhas,  que  vizinhas 
Ás  densas  nuvens  provocais  os  raios. 
Ornai  as  frontes,  onde  abunda  a  neve. 
De  altos  pinheiros  de  robustas  copas; 
Que  Palias ,  inimiga  da  aspereza  , 
Procura  cuidadosa  hum  doce  abrigo  , 
E  seus  dons  alardêa  com  desvelo 

9 


97 


98  GEORGICAS. 

Em  hum  lugar  temp'rado,  em  solo  leve, 

Nem  húmido  em  excesso ,  nem  ventoso. 

A^^òs ,  oh  campos ,  que  regão  mansamente 
Do  pátrio  Tejo  as  aguas  abundantes, 
Quão  pródiga  vos  foi  de  seus  thesouros 
A  benéfica  Palias  !  mas  a  incúria , 
A  fatal  ignorância ,  o  abandono 
Da  cultura  das  arvores  ,  chamando 
A  cólera  dos  ceòs  ,  vestio  de  luto 
Os  ramos  n' outro  tempo  productivos. 
Semelhantes  aos  bosques  do  Cocjto 
De  verdenegros  hórridos  cyprestes , 
Tornão-se  os  olivaes,  e  os  lavradores. 
Perdida  a  esp' rança  da  colheita  ricca. 
Do  ceo  se  queixão  ,  e  á  natura  imputão 
Hum  mal,  de  que  são  causa  em  grande  parte. 

Tu  pois,  que  tens  a  esp' rança  em  teus  viveiros 
Segura  a  torna,  consultando  a  arte, 


CANTO  III.  99 

Quando  a  arvore  nova  em  terra  plantas. 
Mal  que  do  campo  as  messes  preciosas , 
Das  eiras  recolheres,  dês  que  a  terra 
Húmida  assaz  não  resistir  qual  pedra 
Ao  ferro  que  a  penetra ,  as  covas  abre , 
Que  devem  receber  as  novas  plantas. 
Por  longo  tempo  abertas  as  conserva 
Antes  da  plantação ,  para  que  os  raios 
De  Phebo  a  parte  interna  lhes  melhorem , 
E  a  si  chamando  a  terra  os  elementos 
Espalhados  no  ar  e  aeriformes, 
Combinada  com  elles,  productiva, 
Nutriente  se  tome  em  vez  de  estéril. 

No  diaphano  manto,  que  rodéa 
Do  globo  a  superfície,  vários  gazes 
Distinctos  vagão,  que  hum  composto  formão. 
Alli  existe  o  oxygeneo  puro ,  {i5) 
Que  alenta  a  combustão,  e  a  vida  alenta; 
Alli  o  nltrogeneo  azote  (26)  impuro 


1 00  GEORGICAS. 

Inimigo  da  luz  e  autor  da  morte; 
Producto  das  matérias  decompostas 
O  carbónico  ar  (2^7)  nocivo  habita, 
E  o  ligeiro  hydrogeneo  (28)  ao  alto  sobe. 
Alli  se  estende  a  luz  em  rectos  raios, 
Be  cores  os  objectos  adornando , 
£  o  calórico,  agente  da  natura  (29), 
Igualmente  circula  na  atmosphera. 

Envolta  em  hum  ve'o  tal  existe  a  terra , 
De  vários  elementos  combinada, 
Que  a  si  appropriaudo  atres  diversos , 
Roubados  á  atmosphera ,  que  elja  toca , 
Vários  compostos  forma,  e  de  mil  modos 
A  bem  dos  vegetaes  se  modifica. 
Por  isso  do  terreno  a  infrior  parte, 
Em  quanto  os  raios  não  tocou  do  dia , 
Nem  a  massa  diaphana  dos  ares , 
Jamais  as  plantas  nutre ,  antes  ingrata 
Qs  princípios  da  vida  aos  troncos  ne^a. 


CANTO  III.  loi 

Mas  se  he  preciso  abrir  com  tempo  as  covas, 
He  preciso  também  não  ser  escasso. 
Com  a  grandeza  sua.  Sim ,  ditoso  , 
Inda  outra  vez  o  digo ,  sim,  ditoso 
O  tronco ,  que  encontrou  entrada  fácil 
Nas  entranhas  da  terra ,  e  que  plantado 
Em  terreno  movido,  pode  ao  longe 
Raízes  estender  sem  muito  esforço. 

Mas  sobre  tudo,  próvidos  agricolas, 
As  covas  espaçai,  deixai  aos  ramos 
Lugar  em  que  se  estendão ,  sem  que  formeirV 
Pela  sua  união  espessa  sombra , 
Concentrando  a  humidade  no  terreno , 
E  vedando  do  sói  o  quente  raio ; 
De  si  próprios  tornandp-se  inimigos, 
Assassinando  a  si ,  e  aos  que  os  rodcao. 

NÃo  calcules  o  numero,  mas  antes 
A  perfeição  das  arvores ,  e  alegre 

9*^ 


102  GEOEGICAS. 

O  olival  correrás ,  quando  dos  ramos 
Te  ofFVecer  a  oliveira ,  curva  ao  peso , 
Os  grossos  feitos  bagos  abundantes. 

Tu,  oh  sabia  Minerva,  agora  dize 
Em  que  estação  convenha  ser  mudada 
Í)o  viveiro  a  oliveira  para  os  campos , 
Tu,  dize  o  tempo,  tu  ensina  o  modo. 
A  Palias  escutai  ora,  oh  cultores. 

Bem  que  plantada  a  arvore  vegete 
Em  qualquer  estação ,  do  frio  inverno 
O  sopro  gelador ,  nem  os  ardores 
Devorantes  do  estio  a  favorecem. 
De  huma  vida  inda  débil  nos  começos , 
Carecendo  criar  raiz  e  ramos  , 
He  do  tempo  o  rigor  nocivo  á  planta. 

Quando  o  sol  chega  á  Libra  e  manda  á  terra 
Do  doce  outono  os  temperados  dias : 


CANTO  111.  io3 

Quando  BaccLo  dos  ramos  da  videira 
Faz  os  cachos  pender  de  cores  varias , 
E  Pomona  os  vergéis  de  fructos  c'roa  : 
Ou  quando  Flora  espalha  pelos  campos 
Do  cândido  regaço  as  frescas  flores , 
E  a  verde  prisão  sua  abrindo  a  rosa, 
Pudibunda  convida  o  sopro  grato 
Dos  inconstantes  Zephyros  lascivos : 
Quando  as  Nymphas  dos  bosques  e  as  das  aguas , 
Deixando  as  grutas ,  vem  tecer  no  campo 
Mil  choréas  c'os  Faunos  amorosos: 
Então  ,  oh  lavrador ,  então  ao  solo 
Do  teu  novo  olival  confia  a  esp' rança. 

Role  o  fundo  da  cova  ,  onde  co'  a  terra 
Combine  a  enxada  hum  bem  cortido  adubo  ; 
Se  acaso  a  greda  alli  em  copia  existe 
Retendo  as  aguas,  de  miúdos  seixos 
No  mais  baixo  coUoca  huma  camada. 
Sobre  o  fofo  terreno  attentamente 


io4  GEORGICAS. 

Distribue  as  raízes ,  que  poupadas] 
Deverti  ser  pela  mão,  que  do  viveiro 
As  arvores  arranca.  Sempre  estranhas 
Ao  contacto  do  ar,  como  á  seccura, 
|*ouco  tempo  da  terra  separadas 
As  raízes  conserva ,  e  busca  attento , 
Ao  cobrir  d^ellas,  evitar  os  vácuos 
Por  onde  os  próprios  suecos  se  evaporão, 
E  nos  quaes  vão  formar  o  seu  retiro 
Insectos  mil ,  que  as  capillares  tenras 
Atacão,  roem  da  mudada  planta. 

Eu  quizera  que  acima  das  raízes 
Depois  de  huma  camada  de  terreno  , 
Outra  de  palhas  frescas  se  lançasse, 
Para  melhor  dos  suecos  nutritivos 
A  sabida  vedar,  ligar  a  terra. 
Conservando  ás  raízes  a  frescura. 

Musa,  singelia.  Musa ,  que  ao  meu  lado 


CANTO  III.  io5 

Á  sombra  das  florestas  recostada , 
Com  o  nome  de  Nize  docemente 
Fazes  ouvir  ao  echo  os  sons  da  frauta; 
Musa,  a  quem  derão  ser,  e  a  quem  conservão 
Enlaçados  amor  e  a  natureza  , 
Ah ,  dobra  do  meu  canto  a  melodia  l 
Chegai  d'este  lugar ,  vinde  oh  colonos , 
Do  meio  d^estas^  arvores  frondosas , 
Que  entre  as  nuvens  a  altiva  fronte  escondem 
Do  lado  d'este  arroio  erystallino , 
Que  vem  de  penha  em  penha  murmurando 
E  de  hum  continuo  orvalho  enchendo  as  plantas  , 
Sobre  esta  verde  relva ,  que  malizão 
Calyces,  (3o)  e  coroUas  de  mil  cores, 
Por  entre  as  quaes  se  esquiva  caprichosa 
A  leve  borboleta,  em  quanto  activa 
Abelha,  que  sussurra,  extrahe  seu  néctar; 
D'este  throno  singello ,  que  a  meu  lado 
Lhe  elevou  a  natura ,  vinde  ouvi-la; 
He  sim  Cybele,  he  ella  quem  vos  falia. 


io6  GEORGICAS. 

Antigos  torreões,  capiteis,  fustes 
A  fronte  como  outrora  não  lhe  adomão; 
Huma  c'roa  de  flores  e  de  fructos , 
De  mil  tenras  folhagens ,  que  tecerão 
As  Graças  ledas ,  sobre  os  seus  cabellos 
Ao  vento  soltos,  hoje  se  devisa,- 
Mollemente  na  relva  reclinada , 
Meio  apartado  o  fino  ve'o  que  a  cobre , 
Deixa  aos  olhos  mirar  seu  lindo  seio ; 
Seio  fecundo,  que  alimenta  os  entes! 
Que  lindas  cores,  graças,  que  figuras. 
Que  producções  aos  olhos  não  descobre 
O  seio  desnudado  de  Cybele  ! 
Vede  mil  animaes ,  que  em  torno  a  cercão , 
Cada^<jual  se  desvela  era  ameigá-la, 
Ella  a  todo^  surri  e  a  todos  lança 
Carinhosa  e  s^ave  ,  o  olhar  materno. 
Mas  com  que  extremo,  com  que  expressão  doce 
A  vós  a  mãi  comnium  os  olhos  lança, 
A  vós ,  cultores ,  seus  dilectos  filhos .' 


CANTO  III.  Í07 

«  Or.NAi  cada  v€z  mais,  ornai  meu  seio, 
Ella  vos  clama ,  que  aos  cuidados  grata 
Eu  juro  sempre  ser;  para  instigar-vos 
Á  industria  e  ao  cuidado  fui  eu  mesma 
Quem  o  meu  seio  revesti  de  abrolhos. : 
Hoje  pois  a  vós  toca,  oh  filhos  caros, 
De  mais  bellos  adornos  revestir-me. 
Ah  deixai,  deixai  erros  e  phantasmas  j 
Deixai  o  luxo,  que  do  orgulho  filho  , 
Me  ultraja  e  me  assassina  ,•  vãos  thesouros 
Cessai  de  procurar ,  e  de  arriscar-vos 
Aos  pVigos  e  aos  trabalhos  por  colhé-Ios  ; 
Em  mim  ,  em  mim  tereis  com  pouco  esforço, 
Da  riqueza  real ,  dos  bens  a  posse. 
No  regaço  da  paz  e  da  abundância 
Eu  vos  farei  viver ,  grata  aos  desvelos 
Que  praticardes  sem  cessar  comigo.  » 

Sim  ,  cultores ,  Cybele  assim  vos  brada. 
Avante,  avante,  que  eu  jú  vejo  ao  longe 


io8  GEORGICAS. 

A  charrua  virando  em  torno  aos  troncos 

Da  oliveira  o  terreno ,  e  d'este  modo 

Dobrando  a  producção.  Alem  unidas 

Ceres  e  Palias  hum  terreno  habitão; 

E  em  quanto  aquella  a  espiga  amadurece, 

Esta  risonha  vai  limpando  as  flores. 

Longe  dos  olivaes ,  sim  longe  fuja 
A  casta  Protectora  das  florestas, 
Que  se  apraz  nos  terrenos  sem  cultura. 
Não  ache  no  olival  movido  sempre, 
Hum  refugio  o  coelho ,  que  entre  o  mato 
Pode  o  tiro  evitar  dos  caçadores; 
Nem  a  lebre ,  que  a  traz  os  voos  deixa 
Do  alipede  galgo ,  aqui  se  esconda. 

Em  torno  ás  covas  onde  a  planta  cresce , 
Cuidadosos  lançai  no  outono  o  adubo, 
A  fim  de  que  do  inverno  as  frias  aguas 
D'elle  impregnem  a  terra ,  e  cubiçosas 


CANTO  III.  ,^^ 

As  radiculas  finas  colher  possão 
Da  seve  os  elementos.  Já  frondosa 
Tejo  erguer-se  a  oliveira  nas  campinas; 
Formão  matiz  as  folhas  alvo-verdes 
Co'  a  verde  varia  cor  dos  arvoredos , 
E  as  temas  aves  mil  amantes  hjmnos 
Knvião  té  ao  ceo  d^entre  os  seus  ramos. 

Frondoso  louro,  consagrado  ás  cVoas 
Dos  heroes  e  dos  vates,  tu  altivo 
Tronco  de  Jove,  de  que  outr'ora  os  ramos 
Olympicos  triumphos  premiavão , 
E  vtís,  oh  cedros ,  esplendor  do  Libano , 
Curvai  as  flechas,  que  affrontando  as  nlvens 
Ergueis  até  ao  ceo,  e  reverentes 
Adorai  a  oliveira,  que  em  partilha 
A  utilidade  tem  ,  e  a  excelsa  gloria 
ne  ornar  a  mão  da  paz  nos  Ceos  nascida. 

l^oRêM,  que  vejo  ?  apenas  chega  o  tempo 


jo 


lio  GEORGICAS. 

Dei  decotar  os  ramos ;  ignorante 
Rústico  sem  piedade  sobe  ao  tronco , 
Vibra  o  rijo  podão ,  e  prostra  as  braças 
Da  arvore  infeliz.  Em  pouco  tempo 
Cobrem  o  chão  os  ramos,  largas  chagas, 
Tyrannas  incisões  do  tronco  as  veias 
As  injurias  expõem  do  iroso  vento. 
De  voz  privada  a  miserável  planta 
Lamentar-se  não  sabe ;  mas  sem  forças , 
Dilacerada  ,  rota  e  esvaida , 
Languida  cahir  deixa  as  murchas  folhas  , 
E  em  vez  da  producção  em  que  abundava , 
Èm  conservar-se  contra  hum  trato  duro , 
E  em  reparar-se  os  suecos  empregando, 
Becusa  o  ricco  fructo ,  e  curta  vida  , 
Que  mais  longa  esperava ,  infeliz  conta. 

Pelas  excavações  da  rota  casca , 
Pelas  fendas  dos  estalados  ramos 
A  seve  se  corrompe  e  se  extravasa ; 


CANTO  III.  Ill 

Penetra  a  chuva,  a  neve  se  insinua; 
Succede  a  corrupção  ,  as  fibras  secção, 
Os  delgados  canaes  ,  que  a  natureza 
Para  circulação  dos  vitaes  suecos 
Por  toda  a  parte  havia  semeado , 
Aniquilão-se ;  alojão-se  no  lenho 
Roedores  insectos,  sujos  vermes. 
Mil  parasitas  (3i)  vão  roubando  as  braças; 
Tornão-se  ena  fim  os  troncos  cavernosos. 
Nas  corruptas  profundas  cavidades 
Da  arvore  infeliz  ao  dia  fogem 
O  triste  noutibó,  o  mocho  triste, 
A  coruja  severa  e  taciturna, 
O  alado  mamai  filho  da  noute ; 
Alli  se  alojão  mil  repliz  impuros. 
Sem  base ,  sem  sustento ,  eis  sopra  Eolo  , 
E  a  arvore  quebrada  cabe  por  terra. 

Até  quando ,  até  quando ,  oh  pátria  minha 
Te  verei  na  indolência  sepultada  ? 


1 1 2  GEORGICAS. 

Ate  quando  huma  rústica  ignorância  , 
Nas  mãos  tomando  da  culiura  o  trato, 
Pobres  nos  tornará  e  desditosos? 

Deixai,  oh  vós  que  das  sciencias  úteis 
O  dia  illuminou,  deixai  os  muros 
Das  cidades  e  a  luz  trazei  aos  campos. 
A  idade  renovai,  feliz  idade 
Em  que  o  agricultor  ganhava  aliares; 
A  idade  em  que  pascendo  os  seus  rebanhos 
Em  doces  versos,  em  canções  sublimes 
Espalhavão  as  luzes  os  pastores; 
Em  que  os  heroes  de  louro  coroados  , 
Arando  o  próprio  campo ,  descansavão. 

Entre  tanto  a  ti  só,  aos  nossos  filhos. 
Se  as  doçuras  de  pai  o  Ceo  me  guarda , 
Oh  Nize  minha  ,  votarei  meu  canto. 
Sim  por  vós ,  filhos  meus ,  verei  hum  di<i 
Estes  ruraes  preceitos  praticados; 


CANTO  III.  ii5 

Proiluclo  caro  do  vigor  dos  annos; 
Eutão  cheio  de  cãs  e  de  venturas , 
Assentado  entre  vós ,  qual  cedro  antigo 
Entre  as  alegres  plantas  que  o  rodeio , 
A  par  da  Esposa  folgarei  de  ouvir-vos. 
Mas  se  estas  que  dictei  singelas  rimas 
A  hum  só  cultor  na  Pátria  despertarem , 
Meu  canto  bemdirei,  serei  ditoso. 

Ouvi-ME  pois  de  novo ,  oh  lavradores  , 
As  leis  cantar,  que  os  campos  férteis  tornão  , 
E  da  oliveira  productiva  o  trato. 
Em  vez  de  derrotar  as  plantas  vossas  , 
Lhes  dareis  sábios  proveitosos  cortes. 
Entre  as  braças  que  a  arvore  povoâo  , 
Sabereis  distinguir  as  que  viçosas 
De  folhas  e  de  fructos  se  guarnecem ; 
As  que  enfermas ,  corruptas,  ou  privadas 
Lo  contacto  do  ar ,  o  centro  enrcdão  , 
Estéreis  filhas  de  huma  mfti  fecunda  , 


11 4  GEORGICAS. 

Que  o  seio  maternal  sem  fiucto  esgotão : 

Prostre  o  ferro  igualmente  os  mortos  ramos ; 

Procurando  com  tudo ,  que  entre  as  braças 

Regular  equilíbrio  se  conserve. 

Para  limpar  assim  as  oliyeií^as 

Deve  evitar-se  o  regelado  inverno ; 

Mas  logo  que  modera  os  seus  rigores , 

E  antes  que  a  primavera  a  seve  mova , 

O  tempo  he  próprio  a  semelhante  emprego. 

O  practico  vulgar  corta  sem  tino 
Obliqua  ,  horizontal,  verticalmente; 
Deixa  pontas  e  covas;  despedaça 
Muitas  vezes  a  casca,  e  racha  o  lenho. 
Cautelloso  ao  contrario  o  experto  agricola 
■  Na  direcção  do  tronco  alinha  o  golpe , 
Co  ferro  o  pule,  de  unguento  o  cobre; 
A  natureza  grata  aos  seus  cuidados 
Produz  a  casca,  e  dentro  em  pouco  espaço. 
A  pensada  ferida  cicatriza. 


CANTO  III.  ii5 

Se  acaso  em  algum  ramo  productivo 
Da  podridão  se  mostrão  os  começos , 
O  ferro  logo  a  parte  enferma  escava , 
E  da  massa  benéfica  a  penetra. 

Oh  bem  haja  o  colono  venturoso 
Que  aos  trabalhos  ruraes  assim  se  applica  ! 
Com  que  doce  prazer  recolhe  os  fructos 
Das  arvores ,  que  a  própria  mão  plantara  ? 
Com  que  prazer  no  ardor  do  quente  estio 
Das  sombras  goza,  que  elle  mesmo  eiguêra? 
Aos  amigos  com  gosto  apresentando 
Do  seu  trabalho  o  fructo ,  de  algum  modo , 
Creador  de  outros  entes ,  se  remonta 
Sobre  o  ser  de  mortal.  Porem  he  tempo , 
He  tempo ,  oh  Nize ,  de  colher  o  fructo 
Da  arvore  de  Palias.  Oh  colonos. 
Deixai  da  varejão  o  brutal  u^ , 
Que  a  preguiça  consagra ;  com  seus  golpes 
O  fructo  tenro  esmaga ,  fere  os  ramos , 


Ii6  GEORGICAS. 

Os  pimpolhos  destroe ,  que  prometlião 
A  futura  colheita ;  sobre  a  terra 
Dispersa  as  folhas,  nutrição  e  amparo 
De  novos  rebentões  que  a  natureza 
Para  fructos,  ou  braças  só  destina. 
Erguei,  plantai,  activos  lavradores  , 
Leves  escadas  contra  o  tronco  forte  j 
Subi,  colhei  cora  mão  suave  os  fructos, 
E  em  vez  de  derrotar  a  fértil  planta. 
Poupai  os  novos  bens ,  que  ella  vos  guarda. 

Lançí,  oh  Musa,  por  terra  a  tulha  iramunda. 
Triste  invenção  da  ignorância  crassa  , 
Onde  barbaras  mãos  amontoando 
A  azeitona ,  co'  apanho  macerada  , 
Nella  se  atêa  com  ingente  força 
Viva  fermentação,  que  sem  remédio 
O  óleo,  inda  nas  drupas  (32) ,  contamina. 

Oh  vós,  que  das  sciencias  e  das  artes 


CANTO  III.  117 

Arais  o  campo  claro  e  luminoso  , 
Aos  cultores  formai  machinas  próprias 
Para  a  prompta  extracção  de  hum  puro  azeite. 
Vós  os  aliviai  nos  seus  trabalhos , 
Com  elles  reparti  as  luzes  vossas. 
A  pátria  o  pede ,  a  humanidade  o  manda ; 
E  se  vós  surdos  sois  ás  vozes  d'ella 
A  quem  terá  recurso  a  humanidade? 


CANTO  IV. 


J  A  d'  eciío  em  echo  mil  concertos  voão , 

Soando  alegres  Kymnos  pelos  valles  ,• 

Agudos  sistros,  gaitas  sibilantes, 

Adufes  e  pandeiros  acorapanlião 

Dos  coros  foliões  as  ledas  vozes. 

Sobre  o  carro ,  que  toldão  co'  a  ramagem 

As  tenras  vides  e  as  torcidas  heras, 

O  Deos  de  Nysa  recostado  assoma ; 

Sobre  a  frente  galhuda  e  prazenteira 

De  parras  lhe  tremula  huma  grinalda  : 

Nas  mãos  movendo  alegremente  hum  thjrso 


Mo  GEORGICAS. 

Olha  de  quando  era  quando  a  linda  Ariadna 

Que  no  carro  a  par  delle  recostada  , 

De  hera  e  vinha  também  cingida  a  testa , 

Com  hum  meigo  surriso  lhe  responde. 

Quatro  tigres,  perdida  a  feridade, 

Ao  jugo  presos  o  seu  carro  tirão , 

Pelos  caprinos  Faunos  conduzidos. 

Precedendo  o  cortejo  o  bom  Sileno 
Mostra  risonho  o  rubicundo  rosto ; 
Co'  a  sinistra  empunhando  a  rara  clina 
Do  tardio  animal  que  alegre  monta. 
Ao  lado  d'elle  o  coro  das  Bacchantes 
Em  mosqueadas  pelles  envolvidas , 
Nus  os  braços,  as  comas  destrançadas, 
E  nas  formosas  mãos  thyrsos  vibrando , 
Ao  ar  se  elevão  em  continuos  saltos. 
Pouco  depois  dos  Satyros  caprinos 
Segue  cabriolando  a  vaga  turba , 
Huns  fazendo  soar  torcidos  búzios , 


CANTO  IV«  I 

Outros  agudas  gaitas  dissonantes , 
E  ao  som  dos  variados  instrumentos , 
Era  mil  alegres  saltos  vão  ferindo 
A  compasso  c'os  pés  a  verde  relva. 

BiGENiTO  Leneo ,  Evias  frementes , 
O-inisparsas  Bacchantes ,  vós  galhudos 
Capri-saltantes  Satyros  thyrsigeros 
Plantai  em  nossos  campos  as  videiras, 
E  ensinai  aos  de  Luso  agricultores 
Os  trabalhos  da  vinha  e  os  segredos 
Da  ardente  producção  dos  vossos  troncos. 
Arrancai  das  encostas  preciosas 
O  amargo  carrasco,  o  tojo  ingrato; 
Arrancai  a  aroeira  e  o  trovisco , 
A  urze ,  a  torga ,  o  espinheiro  agreste ; 
Dos  animaes  selvagens  a  morada 
Derrotai ,  destrui ;  que  em  hum  tal  solo 
Das  retorcidas  cultivadas  cepas 
Tão  mil  cachos  pender  deliciosos. 


122  GEORGICAS. 

Vós  oh  rochedos,  que  de  rude  mármore 
Os  bancos  ostentais ,  no  seio  vosSo 
Já  de  Vulcano  se  introduz  o  raio , 
Fulmina  o  nitro ,  eis  de  improviso  estala 
A  calva  frente  da  robusta  penha ; 
Rolão  penhascos  desde  o  cume  á  falda , 
E  a  mão  da  industria  de  Lenêo  as  plantas 
Faz  succeder  aos  musgos  ,  que  vestião 
Os  áridos  penedos  descarnados. 
Rei  dos  metaes ,  a  fronte  das  montanhas 
O  ferro  em  mil  sentidos  rompe  e  abre. 
Penetra  o  sol  o  áspero  terreno , 
E  em  breve  fértil  para  Baccho  o  torna 

L\  onde  o  pólo  árctico  se  eleva 
A  vinte  e  cinco  gráos ,  até  ao  clima 
Em  que  distancia  igual  a  Cynosura 
Conserva  do  zenith  e  do  horizonte,  (33) 
Espontânea  rebenta,  vinga  e  cresce 
Com  ingente  vigor  a  fértil  cepa ; 


CANTO  IV.*  125 

Alli  rival  das  arvores  frondosas 
Sobe  da  terra  em  vigoroso  tronco , 
Com  vaidade  elevando-se  nos  ares 
Ostenta  as  folhas ,  e  por  toda  a  parte 
Aos  olhos  deixa  ver  os  roxos  cachos ; 
Porém  fora  d' alli,  ou  destinada 
O  vinho  a  fornecer ,  carece  a  vid-e 
De  longas  attenções  e  de  cuidadt>s  ; 
Hum  abrigo  requer  ;  mais  leda  folga 
Tios  montes,  que  ao  nascente  expostos  ficão, 
Ov  qi^e  ao  meio  dia  a  fronte  alegres  volvem  / 
Nas  encostas  porém  ,  que  o  norte  açouta  , 
Privada  do  calor ,  e  combatida 
Is'a  estação  fria,  dos  gelados  ventos 
Dos  aquilôcs  soberbos  e  ferozes  , 
Jamais  o  doce  cacho  amadurece  : 
E  em  vez  de  dar  a  uva  hum  sueco  forte , 
Só  produz  hum  licor  aquoso  e  fraca. 
Igualmente  nos  valles  abundantes , 
Onde  Baccho  p,  teçreuo  usurpa  a  Ceres , 


1^4  GEORGICAS. 

Jamais  a  industria  colherá  bom  vinho. 

Cresçao  fecundas  messes  nas  campinas, 
Nas  bordas  que  os  ribeiros  humedecera; 
Nos  levantados  cumes  das  montanhas 
Elevem-se  risonhas  as  florestas ; 
E  tu,  oh  vinha,  vem  ornar  as  brandas 
As  suaves  encostas  das  collinas. 

Oh  tu ,  que  á  terra  confiar  pretendes 
Em  própria  exposição  de  Baccho  as  plantas , 
Em  primeiro  lugar  prepara  o  solo ; 
Pois  nunca  em  hum  terreno  inculto  e  duro 
Alguma  plantação  prosperar  pode. 

Cultores  sábios  ha  que  despojando 
Do  importuno  mato  a  branda  encosta 
Em  montões  as  raizes  seccar  deixão 
Com  o  ardor  do  sol;  depois  no  outono 
^^  entregão  ás  chammas  devorantes , 


CANTO  IV.  ia5 

E  o  terreno  cortado  co'a  charrua  y 
Das  cinzas  yegetaes  recolhe  as  parles. 
Alli  lanção  então  ténue  senteio , 
Lanção  cevada,  avéa,  ou  trigo  fértil, 
Ou  adubando  a  terra ,  uella  crião 
Os  tuberosos  pomos  da  batata; 
Alli  também  he  útil  o  onobrychis, 
E  se  o  solo  o  permitte,  alta  luzerna, 
Em  raizes  e  em  folhas  abundante  ; 
E  depois  de  tratar  assim  a  terra 
Os  delgados  bacellos  lhe  confiãa. 

Sobre  o  hábil  cultor  meigo  volvendo 
Clemente  olhar  o  Ceo ,  em  seus  celleiros 
Araontoa-se  o  trigo ,  em  seus  lagares 
Espumando  fermenta  hum  doce  mosto ; 
Sob  o  peso  dos  pomos  sazonados 
As  arvores  as  braças  vigorosas 
Çurvão  nos  seus  vergéis,  e  nos  seus  campos 
Çí^^ai  abundância  das  folhas  da  oliveira 


ia6  GEORGICAS. 

Quasi  a  dos  fructos  disputar  se  atreve. 

Vem,  Niza,  huma  aura  fresca  nos  convida 
Pelo  campo  a  gyrar,  eia  corramos 
Essa  coUina  ,  que  hum  cultor  perito 
Ao  Deos  de  Naxo  consagrar  pretende. 
Eu  já  vejo  o  terreno  preparado 
Com' precedentes  óptimas  culturas; 
Em  diflfrentes  secções  vejo  os  bacellos 
Que  o  podador  cortou,  depois  que  o  outono 
Da  vide  o  fértil  páo  deixou  maduro ; 
Os  que  produzem  moscatel  fragrante 
Cobrem  de  hum  lado  a  terra ,  de  outro  aquelles 
Que  devem  fornecer  a  malvasia; 
De  hum  lado  os  que  produzem  roxos  cachos 
Próprios  a  dar  a  cor  ao  mosto  puro  , 
Do  outro  os  da  uva  branca  delicada  ; 
Todos  cortados  em  robustas  plantas , 
Que  fecundas,  bons  fructos  tenhão  dado. 


GANTO  ly.  127 

De  tosca  pedra  vê  os  baixos  muros 
Que  em  socalcos  cortando  a  longa  encosta , 
Sostem  com  arte  as  adubadas  terras,- 
As  longas  ruas  ao  cordão  abertas 
Parecem  convidar  os  úteis  carros 
Que  ainda  hum  dia  da  cultura  em  premio 
A  vindima  ao  la^ar  conduzir  devem. 
Contempla  toda  a  encosta,  que  movida 
Até  ap  fundo,  promover  parece 
Da  delgada  raiz  o  crescimento. 

La  no  cume,  que  o  sol  no  extremo  occaso 
Doura  c'o  derradeiro  de  seus  raios, 
\ê  a  parte  da  terra  destinada 
As  cepas  a  nutrir  de  cachos  brancos , 
Mais  do  que  as  outras  cepas  vigorosas, 
E  que  sempre  mais  tarde  amadurecem ; 
Na  falda  da  collina ,  que  mais  fértil 
Tornão  as  aguas  do  chuvoso  inverno, 
Já  marcado  ao  cordão  devisa  o  solo 


ia8  GEORGICAS. 

Destinado  a  nutrir  os  roxos  cacho» , 
As  espécies  mimosas  e  as  que  excedem 
Todas  as  mais  em  saborosos  suecos. 

A  divisão  geral  preside  a  ordem , 
A  ordem  mãi  do  gozo  e  da  belleza , 
E  foco  principal  da  utilidade. 
Aqui  dos  bosques  a  nociva  sombra 
De  Baccho  ás  plantas  o  calor  não  veda  , 
Nem  dos  rios  e  charcos  os  vapores 
A  delicada  florescência  àttacão. 
Parai  oh  ventos ,  respeitai  os  tenros 
Delicados  pimpolhos,  e  vós  neves, 
Ah  não  cresteis  do  agricola  a  esp' rança  ! 
Benigno  olhar  do  facho  do  universo , 
Luz  fecundante ,  amor  da  natureza 
Propicio  a  hum  solo  tal  teus  raios  manda  ! 

Já  tem  findado  o  ardor  do  quente  estio ; 
Já  de  Latona  o  filho  o  carro  avança 


CANTO  IV.  jig 

Na  sétima  porção  do  gyro  inteiro , 
Onde  a  sagrada  Themis  tem  pendente 
A  balança  fiel  no  recto  braço  ; 
Já  de  Ceres  os  dons  ha  muito  guarda 
Sob  o  tecto  o  colono  recolhidos , 
E  a  terra  fresca  e  húmida  convida 
Do  vinhateiro  próvido  os  trabalhos. 
Vinde,  que  he  tempo  de  entregar  ao  solo 
As  plantas  de  Lenêo.  Já  de  echo  em  echo 
Da  enxada  retinnindo  os  golpes  voão , 
Abrem-se  a  fundo  as  alinhadas  valias , 
E  de  huraa  em  outra  cahe  movida  a  terra , 
Sobre  os  longos  sarmentos  (34)  já  dispostos^ 

Mas  i^o  terreno  duro  e  pedregoso 
O  ferro  agudo  vai  abrindo  as  covas , 
Em  que  a  mão  os  bacellos  deposita 
Da  terra  vegetal  o  vácuo  enchendo ; 
£  se  hum  dia  a  charrua  passar  deve 
Por  entre  as  cepas ,  sempre  impróprio  trato  ^ 


i3o  GEORGICAS. 

£in  espaçadas  covas  logo  as  plantí^^ 

Com  hum  numero  grande  de  bacellos 

A  fértil  terra  providente  occupa, 

A  fim  de  moderar-lhes  o  sustento ; 

Deixa  ao  contrario  entre  estes  grande  espaço 

Quando  hum  terreno  magro  e  pouco  fértil 

Com  escassez  a  seve  lhes  ministra. 

Se  acaso  a  cepa  remontando  aos  ares 

Deve  desenvolver  extensos  ramos 

Carece  então  de  mor  profundidade, 

Para  que  a  proporção  sempre  conservem 

As  raizes  no  chão ,  no  ar  co'  as  braças. 

Desta  maneira  o  agricultor  experto 
De  Bíiccho  as  plantas  ao  terreno  entrega ; 
Desta  arte  lhe  confia  as  tenras  vides 
Cujos  cachos  mais  tarde  fermentando  , 
A  origem  são  do  néctar  espumoso, 
Do  ardente  alcohol  (35) ,  que  por  activo 
Çe  sp'rito  usurpa  impropriamente  o  nome; 


CANTO  IV.  iDi 

Netítar ,  que  da  razão  as  luzes  frouxas 
De  lodo  apaga,  e  dos  signaes  de  vida , 
E  do  vigor  os  fortes  membros  priva , 
Se  do  uso  delle  o  homem  não  modera 
Vergonhoso  appetite.  Autor  funesto 
De  desordens,  de  crimes,  que  excitando 
A  cólera  e  furor ,  em  feras  torna  • 
Os  míseros  raortaes,  a  quem  provoca. 
Mas  se  a  prudência  o  torpe  abuso  impede, 
Do  velho  curvo  c'  os  pesados  annos 
Kos  frios  membros  o  calor  renova , 
Anima  o  braço ,  que  volvendo  a  terra , 
Já  de  suor  banhado  desfalece, 
E  reluzindo  nas  douradas  taças. 
Nos  limpidos  crystaes  puro  brilhando 
Doce  alegria  e  bum  prazer  honesto 
Nos  alegres  banquetes  insinua. 
D'elle  escudado  o  viajante  aíTronla 
Da  Zembla  os  gelos,  ou  as  ondas  turvas 
Do  procçUoso  reino  Neptunino. 


lòi  GEORGICAS. 

Riqueza  do  que  habita  hum  solo  impróprio 

As  colheitas  de  Ceres  ,  commutada 

Em  farinhosos  grãos  traz  a  abundância 

A  hum  paiz  sem  seus  dons  inhabitavel. 

Oh  sábio  creador  da  natureza , 
Entre  mil  pToducções ,  huma  somente 
Inútil  se  não  vê  nas  obras  tuas  ; 
E  se  o  vicio  fatal  de  tudo  abusa , 
Sejão  ao  vicio  os  damnos  imputados ! 

Ttr  pois ,  que  tens  plantado  as  brandas  vides , 
Vem  os  modos  ouvir  de  cultivá-las.      \ 
Yarião  como  os  sitios  as  maneiras 
De  amanhar  de  Lenêo  as  férteis  plantas, 
N'huns  paizes  levanta-se  a  videira 
As  arvores  unida,  já  cingindo 
Co' as  pampinosas  braças  alto  olmeiro, 
Já  o  tremulo  chopo ,  a  amendoeira  , 
Já  a  amoreira  de  sanguineos  fructos. 


CANTO  IV.  i33 

Entre  a  ramagem  dos  frondosos  troncos 
Enlaça  a  vinha  os  ramos ,  de  huns  a  outros 
Mil  vistosos  festões  de  hum  verde  alegre 
Pendem  áquem ,  e  alem;  os  áureos  cachos 
Suspensos  variamente  ao  mesmo  tempo 
Desafião  o  gosto  ,  e  a  vista  encantão. 
Taes  de  Naxo  as  collinas  nos  pintarão , 
Acesos  em  furor  dithyrambifico  , 
Os  sectários  do  filho  de  Semeie; 
Taes  as  tem  a  fecunda  Lombardia , 
Das  Gallias  parte,  parte  das  Ilespanhas, 
E  a  Lusa  provincia  trans-dourana. 

Vós  porém  ,  oh  do  Douro  arrebatado 
Margens,  do  padre  Emonio  tão  prezadas, 
Vós  collinas  vizinhas  ás  correntes 
Do  Zêzere  e  do  Tejo  soberano , 
Vós  oh  campos,  que  lava  o  Guadiana  , 
A  baxa  vinha  cultivais  ditosos. 


\2 


134  GEORGICAS. 

Ha  paizes  também,  onde  da  cepa 
Mais  elevada  os  alongados  ramos 
Sustenlãò  mortos  páos  entrelaçados; 
Outros  aonde  a  planta  vigorosa 
Cada  anno  floresce  em  muitas  varas  j 
Outros  em  fim  aonde  junto  á  terra 
Humilde  pelo  chão  quasi  se  arrastra. 
Feliz  o  vinhateiro,  que  iustruido 
Dos  principios  da  arte  em  que  se  emprega  j 
Sabe  experto  escolher  ao  seu  terreno 
Que  espécie  de  cultura  mais  convenha; 

Musa,  tu  que  me  ligas  com  cadéas 
De  rosas  e  de  flores  ao  trabalho , 
Tu  me  apresenta  as  leis ,  que  a  natureza 
Na  formação  do  fructo  da  videira 
Constante  segue.  Ouvi-me  agricultores , 
E  do  que  a  Musa  minha  expor  pretende 
Fazei  a  applicação  ás  plantas  vossas. 


GÀNTO  IV.  lU 

O  raio ,  que  de  Phebo  luniinoso 
Sobre  o  terreno  cahe ,  trazendo  a  elle 
A  luz  com  o  calor,  pelo  terreno 
Para  a  planta  ,  que  nutre ,  he  reflectido ; 
{)  do  calor  reflexo  a  força  excede 
A  do  raio  que  vem  direito  á  planta ; 
Por  isso  quanto  mais  próxima  á  terra , 
Sem  aos  ares  subir,  seus  fructos  nutre, 
Tanto  mais  em  seu  fructo  o  calor  obra. 

Da  Lybia  nos  desertos  arenosos, 
Onde  ruge  o  Leão ,  onde  exercita 
O  tigre  a  tyrannia  sanguinosa , 
Do  alvo  chão,  que  hum  sol  ardente  exhaure, 
Reflectido  o  calor  com  força  ingente 
Das  arvores  abrasa  as  verdes  folhas , 
Tornando  tudo  em  cinza ,  e  tudo  em  fogo. 
Em  toda  a  parte  a  próvida  natura. 
Mal  os  entes  creou,  proveo-os  de  órgãos 
Por  onde  a  vida  e  os  suecos  lhes  ministra. 


i36  GEORGICAS. 

A  planta,  que  adherente  existe  á  terra. 

Pelos  poros  da  casca ^  pelas  folhas, 

Como  pelas  raizes,  se  alimenta; 

E  tanto  mais  frondosa  ella  se  estende 

Tanto  mais  suecos  distribue  aos  fructos , 

Que  pendem  de  seus  ramos  vigorosos. 

Aquelle  que  recolhe  pois  os  cachos 
Em  clima  frio  ,  ou  em  terreno  fértil , 
Onde  ou  falta  o  calor,  ou  cresce  a  seve, 
Deve  sempre  ao  terreno  quanto  possa 
Das  suas  cepas  attrahir  os  ramos. 
Ao  contrario  o  que  planta  em  hum  terreno 
Magro  e  pobre,  ou  em  que  hum  sol  ardente 
Da  sua  planta  as  verdes  folhas  cresta , 
Deve  a  vinha  altear,  e  até  aos  troncos 
Permittír-lhe  que  eleve  ousada  as  vides. 

Se  quizermos  a  vinha  ver  vingada  , 
po  bacello  plantado  com  desvelo 


CANTO  IV.  107 

Ao  ignorante  a  poda  não  deixemos. 
Dês  que  a  folha  cahio  das  mortas  varas , 
Dês  que  a  seve  sumiudo-se  não  corre 
Das  braças  pelos  vasos,  com  prudência 
Das  mesmas  braças  amputemos  parte. 
A  tenra  planta ,  que  na  terra  conta 
Hum  anno  apenas ,  nada  mais  se  deixe 
Que  o  rebentão  mais  próximo  ao  terreno , 
E  a  hum  só  olho  ainda  o  limitemos. 
Em  a  poda  seguiute  duas  hasteas 
Se  podem  já  deixar  á  joven  planta , 
Sem  com  tudo  abusar  das  forças  suas ; 
Fouco  a  pouco  passando  á  adolescência 
Cada  vide  nutrir  mais  olhos  pode. 

Eis  formada  a  final  do  Baccho  a  cepa , 
Já  cresce  vigorosa ,  e  já  promette 
Ao  vinhateiro  activo  a  recompensa  : 
Ah  praza  ao  Ceo  que  o  vinhateiro  avaro 
Nunca  se  esqueça  de  poupar-lhe  as  forças ! 

12* 


i38  GEORGICAS. 

De  outra  maneira  exhausta  em  poucos  ânuos , 

Decrépita,  infeliz ,  em  justa  pena 

Hade  negar-lhe  para  spmpre  os  fructos ; 

JNem  lhe  esqueça  jamais  deixar  em  baixo 

Com  prudência  o  fiel ,  que  em  qualquer  caso 

Pode  a  cepa  supprxr,  que  desfalece. 

O  fluido ,  que  nutre  as  varias  partes 
Í)o  todo  o  vegetal,  a  láctea  seve 
Quanto  mais  em  seu  curso  he  demorada. 
Tanto  mai^  se  prepara  e  se  elabora; 
Tendendo  sempre  a  soccorrer  os  cumes 
Apressada  da  ba&e  ás  pontas  sobe  , 
E  alli  rebentar  faz  espessas  folhas, 
Que  mais  e  mais  a  marcha  lhe  promovem  : 
Para  p  fim  de  detê-la  ,  e  dirigi-la 
Os  cachos  a  nutrir,  o  vinhateiro 
Da  cepa,  que  podou,  as  braças  curva. 
O  junco  dos  terrenos  pantanosos , 
O  brando  vime,  que  elle  retorcera 


CANTO  IV.  i39 

Lhe  fornece  as  prisões ;  ora  curvando 
A  só  vara  que  existe ,  á  mesma  cepa 
Quasi  em  circulo  a  liga;  ora  a  retorce 
Na  lança ,  que  entrar  vai  depois  na  terra  '^ 
Mas  se  a  cada  videira  tem  deixado 
Duas  varas  fructiferas,  enlaça 
A  hum  só  esteio  as  de  dobradas  plantas, 
E  a  vinha  inteira  d' esta  sorte  ordena 
Em  alinhados  renques ,  igualmente 
Gratos á  vista,  e  próprios  á  cultura. 

Mas  baldado  he  podar,  empar  as  cepas, 
Os  golpes  alizar,  despir  os  ramos 
Das  parasitas ,  que  a  substancia  roubão , 
Se  do  terreno  onde  as  raizes  morão 
Incautos  desprezamos  a  cultura. 
Nos  paizes  ditosos ,  que  povoão 
Colonos  mil ,  que  do  trabalho  e  industria 
Tirão  contentes  próvida  abundância , 
Três  vezçs  de  Lenêo  em  torno  ás  plantas 


i4o  GEORGICAS. 

He  no  gyro  annual  bulida  a  terra. 
Nunca  depois  das  chuvas  copiosas. 
Antes  que  a  humidade  se  evapore  j 
Nem  quando  o  Ceo  das  nuvens  denegridas. 
Soltar  promette  rápidas  torrentes  , 
Que  do  cultor  mallogrem  os  trabalhos. 

Da  encosta  não  convém  na  inPrior  parte 
A  cava  começar ,  com  ella  a  que'da 
Das  terras  pouco  a  pouco  se  promove; 
Cumpre  porém  puxar  transversalmente 
O  terreno  cortado  pela  enxada; 
Cumpre,  se  acaso  o  solo  se  acha  exhauslo, 
Distribuir-lhe  avaro  hum  próprio  adubo 
£m  terra  vegetal  já  transformado. 

As  folhas,  que  arrendara  o  critocephalo , 
Ou  as  em  que  se  aloja  o  rinomacer, 
Quanto  he  útil  colher  para  queimá-las 
Fora  da  vinha;  quanto  ,  amontoando 


CANTO  IV.  1/0 

O  mal  cortido  estiuine,  armar  ciladas 
Ao  escarbeo  imigo  das  raízes, 
Ou  com  montões  de  pedra  pela  calma 
Attrahir  cuidadoso  o  lento  coclilea , 
E  de  seus  damnos  preservar  as  vinhas! 
Quanto  he  útil  supprir  com  mergulhias 
Por  huma  nova  cepa  a  cepa  enferma , 
Quanto  em  fim  converter  com  bom  enxerto 
A  espécie  má  em  outra  proveitosa. 

Mas  já  vejo  pender  pesados  cachos 
Das  ferieis  vides;  já  de  cor  mudando. 
Pardo  do  mesmo  cacho  o  pé  se  torna , 
E  diaphana  pelle  envolve  o  bago, 
Cheio  de  hum  sueco  grato  e  glulinoso  : 
"Vinde,  oh  vindimadores,  vinde,  he  tempo, 
Antes  que  o  ceo  torrentes  despenhando 
Das  férteis  cepas  damnifique  os  fructos. 
Os  leves  cestos,  jovens  camponezas, 
Nos  braços  enfíai,  trazei  tesouras, 


i42  GEOllGICAS. 

Ou  cortantes  navalhas;  já  surrindo 

O  Outono  de  pomos  coroado 

Vem  trazendo  os  trabalhos  da  vindima. 

Buscai,  vindimadores,  que  sereno, 

Livre  de  nuvens  se  apresente  o  dia ; 

E  sem  ps  offender,  entre  os  mais  cachos 

Attentos  escolhei  os  bem  maduros. 

Feliz  o  agricultor,  que  tem  lagares 
A  vinha  unidos,  e  que  pode  a  elles 
A  uva  transportar  intacta  e  limpa  j 
Mas  se  a  distancia  obriga  a  usar  do  carrp  , 
Seja  o  transporte  feito  com  cuidado; 
Evite-se  o  pizar,  calcar  as  uvas  , 
E  sobre  tudo  o  misturar  os  bagos 
Podres  e  mal  maduros ,  na  vindima. 

Ja  vejo  d'entre  ps  muros  das  cidades 
Surgirem  os  inertes  habitantes 
Que  os  trabalhos  do  campo  ao  campo  chamão  ^ 


^     CANTO  IV.  143 

Onde  alegria  festival  preside. 
Vem  ,  minha  Nize  ,  vem ,  guarnece  a  negra 
Madeixa  de  grinaldas  pampinosas. 
Que  eu  também  de  hera  a  minha  frente  enramo; 
Entremos  nestes  coros,  que  festivos 
Ao  som  das  gaitas  dos  pastores  ledos 
Cantão  do  padre  Emonio  altos  louvores; 
Porem  que  vivo  ardor  me  assalta  a  mente? 
He  elle ,  he  élle ,  o  Thyonêo  sagrado 
Que  ensina  as  suas  leis  aos  lavradores  ! 
Oh  como  nas  encostas  das  collinas 
Aos  echos  voão  mil  festivos  cantos  .' 
Mil  hymnos  de  prazer  vão  repetindo 
De  valle  em  valle  as  grutas  sonorosas  I 
Que  operação  sublime  me  encarregas 
De  pintar  oh  Lenêo?  Antes  de  rota 
Do  bago  a  pelle,  começar  não  pode 
O  succó  a  fermentar;  por  isso  a  uva 
Deve  ser  compriinidá,  e  d'esta  sorte 
A  vinificação  cónvem  dispô-la» 


i44  GEORGICAS; 

Lembra-me  agora ,  oh  Musa  ,  os  resultados 
D'este  processo ,  e  como  as  partes  todas 
Em  geral  movimento  a  hum  fim  conspirão ; 
A  sahida  do  gaz  forte  e  assassino,  (56) 
A  formação  do  alc'ol  leve  e  ardente  , 
A  do  liquido  roxo  e  colorante, 
Que  na  pelle  reside ,  (5'j)  o  calor  forte,  (58) 
Que  livre  sahe  da  cuba,  e  d' este  modo 
Deixa  ver  ao  cultor  como  lhe  he  fácil 
Reprimir ,  excitar ,  e  ao  seu  intento 
Conduzir  toda  a  massa  fermentante. 

Calcada  e  dividida  a  massa  toda, 
Começa  a  natureza  o  seu  trabalho  ; 
D'affinidade  ás  leis  obedecendo  ,  (Sg) 
Da  vinificação  entra  o  processo. 
Começa  o  gaz  carbónico  a  apartar-se 
Do  liquido ,  que  espuma  e  que  se  turva  j 
O  calor  livre  faz  sentir  a  força ; 
O  tártaro ,  da  cuba  nas  paredes , 


CANTO  IV.  145 

E  no  fundo  tenaz  se  precipita;  (4o) 
Decompõe-se  o  assucar^  e  formado 
O  alcohol  apparece,  e  da  corada 
Pcllicula  do  bago  extrahe  o  sueco 
Resinoso,  que  a  côr  do  vinho  encerra.  (4i) 

Mas  para  que  feliz  e  própria  seja 
Toda  a  fermentação ,  sao  necessárias 
Varias  combinações,  diversos  meios: 
Que  o  lugar  onde  a  cuba  o  mosto  encerra 
De  dez  a  quinze  gráos  em  calor  chegue  j 
Que  o  principio  suave  e  assucarado 
Cos  saes  e  a  agua  a  proporção  conserve. 
Por  isso  o  agricultor,  que  encontra  a   uoso 
Em  excesso  o  seu  mosto ,  ou  u'elle  lança 
O  assucar,  que  lhe  falta ,  ou  sobre  o  fogo 
Huma  parte  concentra  e  forma  arrobe , 
Com  que  experto  tempera  e  adoça  o  todo; 
Mas  se  ao  contrario,  em  demazia  espesso 
Se  mostra  o  sueco ,  a  ponto  que  resista 

i3 


i46  GEORGICAS. 

A  fermentação  lenta ,  convém  de  agua 

Juntar-lhe  huma  porção  ,  que  o  tome  liquido; 

Com  taes  cautelas  só ,  com  tães  trabalhes 
Os  licores  de  Emonio  se  preparão. 
Porem  se  he  teu  intefnto  que  ao  abri-lo 
Te  salte  o  forte  vinho  em  branca  espuma , 
Antes  que  o  gaz  carbónico  se  exhale , 
Do  contacto  do  ar  ligeiro  o  priva, 
E  em  toneis  bem  tapados  o  encarcera; 
Mas  para  este  fim  prudente  escolhe 
O  mosto,  que  fermenta  com  lenturá, 
E  que  de  alcohol  e  gazes  não  abunda. 

Se  cubicas  hum  vinho  licoroso. 
Na  doçura  rival  do  mel  do  Hjmelto, 
Antes  de  o  fermentar,  o  louro  cacho', 
Ou  torcendo-lhe  o  pe'  preso  á  videira , 
Ou  em  pranchas  expondo-o,  ao  sói  o  passa, 
E  se  no  licor  teu  prezas  e  buscas 


CANTO  IV.  i47 

A  intensidaíle  em  cor  e  hum  sabor  forte, 
Só  da  cuba  o  retirji  quando  cesse 
Toda  a  fermentação  tumultuosa. 

Sob  a  potente  vigorosa  imprensa 
Te'  á  ultima  gotta  extrahe  o  sueco 
Purpurino  da  pelle  delicada. 
Ha  cultores,  que  os  baixos,  separados 
Do  engaço,  á  cuba  lanção,  e  assim  deve 
Obrar  o  que  prepara  bum  vinho  doce; 
Porem  o  que  o  destina  ao  alambique, 
E  aquelle  que  pertende  çom  p  sueco 
Acerbo  dos  en^^aços  de  algum  modo 
Modificar  a  insipidez  do  mosto, 
Desengaçar  as  uvas  jamais  deve. 

Mas  já  nos  bons  toneis  sendo  encerrado. 
Se  apura  o  vinho  com  trabalho  lento , 
E  huma  fermentação  tranquilla  e  longa, 
pepois  he  que  o  cultor  separar  deve 


i48  GEORGICAS, 

Da  lia  immunda  o  sueco  limpo  e  puro 

Priva)-  este  do  ar,  do  calor  forte, 

E  cm  rolhada  garrafa  em  fim  fechá-lo. 


ry^ 


Assaz  temos  cantado  ,  Musa ,  he  tempo 
De  terminar  de  Emouio  o  longo  trato; 
Agora  empunha  a  ricca  taça  de  ouro, 
E  enchendo-a  de  vinho,  alegre  a  liba 
Em  honra  do  cultor  industrioso , 
Para  quem  desvelada ,  sãos  preceitos 
Das  florestas  á  sombra  tens  cantado, 
Das  floresta?,  que  outr'ora  em  brandos  versos 
Doces  hyranos  a  Amor  de  ti  ouvirão. 


•^«^V«/«liX/V«/V^  ^^^.■^^•«/«/v^/^^ 


CANTO  V 


AiMANTES  da  fecunda  natureza, 

Oh  vós,  que  longe  da  ambição  e  orgulho, 

A  maneira  dos  pais  da  raça  humana , 

Folgais  de  cultivar  os  seus  thesouros  , 

E  tu,  querida  parte  da  minha  alma. 

Tu  ,  que  ate'  agora  me  inspiraste ,  em  quanto 

Os  próvidos  cuidados  da  natura 

Satisfeito  cantei ,  ah  vinde  ,  vinde 

Comigo  celebrá-la,  e  engrandecê-la. 


i5o  GEORGICAS. 

Cantado  temos  com  que  lei ,  com  que  ordem 
A  terra  da  atmosphera  attrahe  os  suecos , 
Como  embebe  em  si  mesma  o  gordo  adubo , 
As  aguas,  os  orvalhos,  e  os  transmitle 
A  planta ,  que  nos  órgãos  os  prepara , 
E  na  seve  os  converte  que  a  sustenta. 
Temos  visto  também  por  que  maneira , 
A  lei  geral  da  morte  obedecendo, 
O  vegetal  na  terra  decomposto , 
Para  outros  nutrir  hábil  a  torna. 
Mas  não  bastava  só  que  a  verde  planta 
D'outra  planta  a  existência  preparasse  ; 
Não  bastava  da  luz  que  exposta  aos  raios , 
Fonte  de  vida  para  novos  entes , 
De  ar  vital  derramasse  na  atmosphera 
Hum  benéfico  orvalho  ,  a  si  chamando 
Dos  mephiticos  gazes  o  veneno ; 
Era  preciso  ainda ,  oh  Mãi  sublime , 
Para  c'roar  tua  obra  inimitável , 
Que  o  sueco  vegetal  na  mesma  planta , 


CANTO  V.  i5i 

Tornando-se  concreto ,  produzisse 
Caules,  raizes,  flores,  folha  e  fructos; 
Que  aos  animaes  servindo  de  sustento  , 
Por  eUes  novamente  comniutados  , 
A  bem  tornassem  da  nascente  planta ; 
E  que  outros  inda  a  enriquecer  tendessem 
Dos  mineraes  o  reino  inanimado. 
Era  preciso  encadear  os  entes 
De  tal  maneira ,  que  as  ruinas  d'este 
A  vida  e  o  vigor  fossem  d'aquelle ; 
E  que  a  matéria  sempre  decomposta , 
E  novamente  sempre  se  compondo , 
Vivificasse  a  face  do  universo  : 
As  aguas  semelhante ,  que  no  immenso 
Lago  do  oceano  c'o  calor  tornadas 
Em  vapor  leve ,  so,bre  os  altos  montes , 
Condensadas  do  ar  se  precipitão  , 
E  dalli  em  torrentes,  em  ribeiros. 
Em  fontes  de  crystal  e  arroios  mansos 
Novamente  ao  geral  tanque  se  arrojão. 


i5i  GEORGICAS. 

Musa  ,  de  huma  tal  mestra  grata  alumna , 
Agora  aos  teus  iguaes ,  aos  lavradores 
Vem  cantar  o  cuidado  das  manadas, 
E  ao  pastor ,  que  modula  a  Ijranda  írauta , 
Qual  o  trato  preciso  aos  seus  rebanhos. 

Oh  tu,  Nume  do  Pindo!  oh  tu,  que  outr'ora 
Guiaste  a  idade  de  ouro  entre  os  pastores, 
líá  do  alto  agora  da  elevada  esphera, 
Onde  reges  o  carro  adamantino , 
Na  mente  hum  vivo  raio  me  dardeja. 
Presta-me ,  oh  sacro  Pan ,  a  branda  frauta  ; 
Vós,  Nymphas,  que  do  Zêzere  as  correntes 
Benignas  protegeis,  e  as  margens  frias. 
Onde  encontrei  hum  termo  aos  meus  desejos  > 
De  hum  amigo  fiel  pelos  desvelos , 
Se  vós  me  grangeastes  tal  thesouro , 
Iluma  voz  me  prestai ,  que  fazer  possa 
Eterno  o  nome  seu,  e  o  vosso  nome* 


CANTO  V.  l55 

Entremos  n'esse  reino  numeroso, 
De  que  o  homem,  qual  rei,  o  sceptro  empunha 
E  pai  a  o  ajudar  em  seus  trabalhos 
Dos  animaes  a  força  aproveitemos. 
Tire  o  boi ,  o  cavallo  o  nobre  peso 
Da  cortante  charrua;  nas  campinas 
Pascendo  a  mansa  ovelha  adube  os  campos; 
Em  quanto  nos  outeiros  atrepando 
À  cabra  roedora ,  já  co'  as  crias , 
Já  com  o  branco  leite  nos  preméa. 

Ah!  quando  chegarão  a  ver  meus  olhos 
Os  cultores  de  Luso  na  abundância? 
Quando  verei  os  campos,  que  ora  cobrem 
Moitas  selvagens,  mil  inúteis  plantas  , 
Em  verdejantes  prados  convertidos, 
Apresentar  a  face  da  riqueza , 
Da  cuidada  fecunda  ag-  icultura  , 
Do  corpo  social  vigor  e  nervo?  ' 


1 54  GEQllGICAS. 

Surgi  da  molle  incúria,  agricultores j^ 
Sarjai  esses  terrenos  pantanosos , 
Onde  ora  crescem  juncos  e  espadanas : 
O  trevo  lhes  lançai,  lançai-lhes  gramas, 
Que  apenas  cultivais  em  curto  espaço  j 
Cobri ,  cobri  os  áridos  outeiros 
Do  onohrjchis  c'o  germe  productivo , 
E  os  terrenos  mais  frescos  co'  a  luzerna ; 
Então,  e  então    ómente ,  em  vosso  aprisco 
O  gado  abundará;  então  somente 
Nos  curraes  entrarão  gordos  novilhos  , 
Após  as  fortes  mais ,  ledos  brincando ; 
Somente  então  as  crinas  sacudindo, 
Leves  cavallos  rincharão  nos  campos; 
Somente  então  em  vez  da  magra  fome 
Off'recerão  ditosas  as  aldêas 
A  face  do  prazer  e  da  abundância. 
Só  produz  o  terreno  cultivado  : 
He  sem  gado  impossivel  a  cultura, 
E  o  gado  nutrir  só  prados  podem. 


CANTO  V.  io5 

Tu  pois ,  que  o  nobre  emprego  tens  eril  sorte 
De  cultivar  a  terra,  attento  cuida 
Pastagens  em  formar.  Duas  espécies 
Hu  de. prados  :  n'huns  d'estes  a  natura 
Per  si  mesma  produz  as  verdes  plantas; 
Porém  se  á  arte  a  ajuda ,  se  nos  baixos 
È  quasi  pantanosos,  valias  abre, 
Se  terra  alli  conduz  para  elevá-los  , 
Se  os  grãos ,  que  dos  palheiros  se  retirãò , 
Cuidadosa  alli  lança  ;  oh  que  vantajem 
Produzirá  trabalho  tão  pequeno ! 
São  comtudo  estes  prados  infriorcs 
Aos  altos  e  elevados ,  onde  as  hervaS 
Menos  aquosas  são,  mais  nutrientes, 
E  sempre  para  os  gados  mais  saudáveis. 
Muito  melhor,  se  a  industria  formar  soube 
Nos  sitios  elevados  providente 
Reservatórios  de  agua^  que  no  estio 
Matem  a  sede  ás  abrasadas  plantas ; 
Alli  também  convém  de  quando  em  quando 


i56  GEORGICAS. 

Dos  bons  fenos  lançar  os  grãos  fecundos  ; 

Distribuir  de  quando  em  quando  adubos ; 

As  moutas  arrancar  e  toda  a  planta , 

Que  ou  com  os  ramos  seus  suíFoca  as  Ijervas, 

Ou  com  a  sombra  espessa  as  damnifica; 

No  contorno  formar  vallados  fortes. 

Que  prohibão  a  entrada  dos  rebanhos 

Nas  épocas  não  próprias ;  seja  quando 

Hervas  que  para  feno  se  destinão , 

Na  sua  florescência  são  cortadas ; 

Seja  depois  das  chuvas  copiosas, 

Quando  com  as  pisadas ,  o  chão  moUe 

Se  tornar  desigual  :  com  taes  desvelos 

Os  prados  naturaes  bom  pasto  crião. 

De  prados  taes ,  das  suas  hervas  finas 
Criadas  pelas  terras  que  descansão, 
Ligeiros  poldros  bellos  se  alimentão; 
São  ellas  as  que  mais  convém  á  ovelha, 
E  com  pastagens  taes  os  fortes  touros 


CANTO  V.  t5 

Bem  como  as  vaccas,  tonião-se  melhores. 

Alem  dos  úteis  prados,  que  a  natura 
Por  si  mesma  produz  ,  formar-se  devem 
Prados  feitos  com  arte  e  filhos  d'el]a; 
Já  plantando  a  luzerna  succulenta , 
Já  com  o  trevo  as  terras  alternando, 
Já  a  couve  dispondo  alta  e  ramosa  : 
Nem  deixarei  ficar  no  esquecimento 
A  fresca  pimpinella,  que  resiste 
Aos  rigores  do  inverno ,  e  que  se  cria 
Ainda  nos  terrenos  menos  férteis. 

Mas  já  correr  deviso  nas  campinas 
O  formoso  animal,  que  abrindo  a  terra, 
Chum  golpe  de  tridente,  á  luz  do  dia 
Deo  das  ondas  o  Nume  soberano. 
Tu,  conquista  completa  dos  humanos, 
Cavallo  dócil,  vivo,  activo  e  forte. 
Dos  quadrúpedes  rei  pela  elegância  ; 

1 ; 


i58  GEORGICAS. 

Em  quem  da  escravidão  não  pode  o  jugo 

Destruir  o  valor,  manchar  a  audácia. 

Aqui  cheio  de  pó  e  branca  espuma, 

Salpicado  de  sangue ,  hórrido  eslrago 

Debalde  te  rodêa  ,  arremessando 

O  peito  aos  p'rigos,  o  clarim  da  gloria, 

O  retinnir  das  ariíias  mais  te  animão  : 

Intrépido  a  aíFrontar  a  morte  voas , 

Com  teu  senhor  os  louros  repartindo. 

Aqui  por  entre  as  lanças  te  arremessas, 

Alli  ouves  zunir  de  Marte  o  raio; 

Mas  no  centro  do  horror  submisso  e  docil. 

Da  mão,  que  te  conduz  ,  a  lei  procuras. 

Erguido  o  coUo ,  as  ondeadas  clinas 

Soltas  vaidoso  ao  ar  ,  o  freio  mordes 

Com  orgulhosa  audácia ,  e  o  chão  que  pisas 

Com  aligeira  planta  apenas  tocas, 

Quando  da  paz  serena  no  regaço 

Em  nobres  jogos  teu  senhor  conduzes. 

Alem,  ao  peitoral  lançando  o  peito 


CANTO  y.  139 

Com  ligeireza  e  brio  ufano  arrastras 
Das  bellas  Nyraphas  os  dourados  carros. 
Mais  baixa  a  frente,  menos  leve  o  passo, 
Preso  á  charrua  traças  ao  colono 
O  productivo  rego ,  ou  com  a  grade 
Cobres  o  grão  fecundo ,  ou  por  ni,il  modos 
Ao  lavrador  úteis  serviços  fazes. 
Companheiro  do  heroe  em  seus  combates, 
Servo  do  cidadão  nos  seus  prazeres , 
D'  alta  pompa  dos  grandes  lustre  e  ornato , 
Alivio  do  cultor  em  seus  trabalhos, 
A  toda  a  parte  teu  serviço  estendes ; 
Do  homem  para  o  bem ,  yiver  só  sabes ; 
Ao  homem  pois  reconhecer-te  importa, 
Se  perfeito  deseja  possuir-te. 

Vários  climas  fornecem  raças  varias. 
Que  produzem  cruzadas  bello  efíeito  , 
Iluma  de  outra  os  defeitos  corrigindo. 
Tu ,  oh  Árabe  errante ,  tu  possues 


i6o  GEORGICAS. 

De  bons  cavallos  a  mais  bella  espécie; 

Só  tu  do  cruzamento  não  careces  ; 

Maiores  são  os  teus ,  são  mais  nervosos , 

Mais  leves,  mais  ardentes.  Tu,  Marrocos, 

Apresentas  vaidosa  os  mais  prestantes 

Cavallos  que  produz  a  Barbaria , 

Que  as  bervas  nutrem  do  nevoso  Atlante, 

Com  os  quaes  fez  de  Dido  outr  ora  a  gente 

D'  Águia  Romana  atraz  volver  os  voos. 

O  encurvado  collo ,  a  fina  orelha , 

A  agulha  levantada  ,  a  fronte  bella , 

A  chata  espadoa,  a  vigorosa  perna , 

A  rápida  carreira,  o  génio  dócil. 

São  dotes ,  que  a  natura  em  grande  copia 

Sobre  elles  derramou.  A  nobre  Hespanha 

O  cavallo  Andaluz  soberba  mostra ; 

N'elle  o  guerreiro  satisfeito  encontra 

A  intrepidez ,  o  orgulho  ,  a  ligeireza , 

O  olhar  fogoso ;  a  nenhum  outro  cede 

O  cavallo  Andaluz,  belleza  e  graça 


CANTO  V.  idi 

Própria  da  pompa,  e  dos  equestres  jogos. 
Tu  Anglo  corredor,  que  te  asf^nielhas 
Ao  bcUissimo  Árabe,  as  fadigas 
Isão  te  fazem  tremer.  Oh  caçadores , 
Taes  cavallos  buscai ,  que  o  raio  imitão 
Na  carreira  veloz ;  mas  a  natura , 
Que  a  força  e  que  o  vigor  lhes  deo  em  dote, 
Mais  avara  com  elles  foi  de  graça , 
De  flexibilidade  e  tacto  fino. 
O  Bretão ,  o  Normando ,  e  os  que  apascentao 
De  Nápoles  os  campos,  para  o  tiro 
Propriissimos  são,  e  com  vantajem 
Os  prendem  á  charrua  os  lavradores. 
Tu ,  oh  Dinamarquez ,  raio  da  guerra , 
Singular  pela  cor;  Germano  forte, 
Mas  pesado  e  sem  folgo;  Húngaro  activo, 
De  quem  o  ferro  agudo  as  ventas  rasga ; 
Frizão,  que  nobremente  os  canos  tiras; 
Tártaro  infatigável,  duro  em  tempVa, 
Na  forma  esguio  e  de  elevadas  pernas-; 

,4* 


i6'2  GEORGICAS. 

Tu  Islandio  a  fmal ,  pequeno  e  feio , 
Afeito  ao  clima  duro ,  que  no  inverno 
De  espesso,  longo  pello  te  revestes; 
Não  sereis,  esquecidos  no  meu  canto. 
Próprios  aos  vossos  climas  e  terrenos , 
A  vossa  imperfeição  tç  certo  ponto 
O  cruzamento  emenda ;  porem  nunca 
Os  paizes  de  frio  e  de  humidade 
Vos  produzem  iguaes  aos  dos  paizes 
Mais  quentes,  inaquosos  e  elevados. 

Tu  pois,  oh  lavrador,  que  em  abundância. 
Prados  possues  e  fecundos  campos , 
Forma  de  boas  éguas  as  manadas, 
E  com  próprios  cavallos  as  fecunda. 
De  emproada  cabeça ,  coUo  airoso 
De  largos  peitos,  tendo  ao  menos  visto» 
Três  gyros  annuaes  do  sol  luzente, 
A  procrear ,  as  éguas  são  dispostas , 
E  aos  seis  annos  mui  próprio  he  o  cavallo. 


CANTO  V.  i63 

Porém  a  escolha  d' este  he  mais  cjue  tudo 
A  períeição  das  raças  necessária ; 
Hum  corpo  grande,  vigoroso  e  forte, 
A  queixada  pequena,  o  olhar  vivo , 
Convexa  a  fronte  hum  pouco  ,  a  orelha  fina , 
Macio  pello,  avantajado  peito. 
Garupa  larga ,  levantada  agulha , 
A  canella  delgada  ,  a  junta  movei, 
A  quartella  não  longa,  o  casco  unido, 
Lúcido  e  negro ,  chammejantçs  olhos  , 
Mobilidade ,  graça ,  génio  docil , 
São  para  a  boa  escolha  os  caracteres. 

Por  tão  perfeitos  pais  sendo  cobertas, 
Podem  as  éguas  dar  perfeitos  filhos. 
Porem  da  égua  gravida  desvia 
Os  p'rigos  e  os  trabalhos ;  separada 
Deve  andar  dos  cavallos ,  e  d'aquellas 
Que  aliraentão  os  filhos^  ou  que  livres 
Folgão  de  exercitar-se  em  leves  saltos; 


i64  GEORGICAS. 

Mas  ao  poldro  nascido  a  liberdade 

Mais  que  tudo  convfem ;  convem-lhe  era  torno 

Da  mãi  brincar  pelos  viçosos  campos, 

E  depois  de  seis  mezes ,  quando  o  tempo 

Chega  de  o  desmamar,  a  branda  sêmea, 

O  soro  ,  as  farináceas  mucilagens , 

A  herva  tenra  alimentá-lo  devem. 

A  coberto  no  inverno  em  curral  próprio 

Deve  as  noutes  passar;  mas  sem  cadêas, 

E  a  par  dos  seus  iguaes  em  liberdade; 

Para  que  em  fim,  chegado  ao  quarto  anno, 

Ou  ao  quinto,  comece  os  seus  trabalhos. 

Na  o  menos  attenção  empregar  deve 
Na  educação  do  boi ,  como  na  escolha 
Dos  touros  para  pais ,  o  que  possue 
Das  vaccas  as  manadas ,  que  em  mil  modos 
Os  trabalhos,  que  exigem  ,  gratificão. 
Eu  não  descrevo  aquella  raça  indócil 
Imagení  do  furor ,  terror  dos  campos., 


CANTO   V.  iG5 

Que  negando-se  ao  jugo  e  ao  trabalho , 
Serve  apenas  de  bárbaro  recreio 
Aos  poucos  povos  ,  que  entre  o  horror  e  a  morte 
Com  hum  bruto  feroz  inda  hoje  estimão 
Loucos  medir-se  em  desigual  peleja. 
Intento  só  pintar  aos  lavradores    ^ 
Do  pacifico  boi ,  próprio  á  cultura  , 
Qual  deva  ser  a  educação  e  o  trato. 

Oh  tu ,  que  ver  desejas  bons  novilhos 
Entrar  no  curral  teu  ,  pastagens  busca 
Altas  e  seccas;  para  mãi  escolhe 
De  pequena  cabeça  e  corno  breve , 
De  vivo  olhar ,  de  larga  espadoa  e  peito , 
De  collo  grosso  e  dilatado  bojo 
A  criadora  vacca,  e  lá  no  tempo 
Em  que  ella  dá  mugidos  amorosos  , 
Na  florente  estação ,  então  a  entrega 
Ao  seu  soberbo  amante ,  o  qual  ter  deve 
Três ,  até  nove  annos :  com  firmeza 


i66  GEORGICAS. 

Visar  os  campos ,  levantando  airoso 
Hum  coUo  grosso ,  huma  cabeça  breve 
JDe  negras  ,  curtas  armas  acjornada  : 
Sobre  os  joelhos  seus  pender  devisq 
Solta  papada  do  robusto  peito ; 
Entre  asxarnudas  pernas  vigorosas 
Lhe  desce  aW  ao  solo  a  longa  cauda , 
E  em  quanto  c'o  mugido  os  ares  fere, 
Dos  negros  olhos  flammas  lhe  chammejão. 
De  outro  rival  a  vista  lhe  embaraça, 
Se  não  queres  no  campo  atroz  peleja. 

Dk  ciunje  incendido,  quantas  vezes 
O  soberbo  animal  o  imigo  busca, 
Olha-o  de  longe,  e  com  a  mão  potente 
Em  torbilhõe^  da  terra  o  pó  levanta ; 
Muge  ,  ameaça ,  e  qual  o  ardente  raio , 
Fero  procura  a  singular  peleja  ! 
Já  as  frontes  comigeras  se  encontrão; 
Já  a  ponta  o  cpntrçino  ^il^^cera; 


CANTO  V.  i6^ 

Urros  de  dor,  mugidos  de  vingança 
Já  temerosos  echos  mil  repetem  ; 
Em  borbotões  na  terra  o  sangue  corre ; 
Raiva  e  ciúme  os  animaes  respirào. 
Mas  o  vencido,  em  pó  e  em  sangue  envòlló  ^ 
Perdida  a  força ,  extincta  quasi  a  vida , 
Ao  contrario  a  final  cede  a  victoria  : 
E  em  quanto  com  o  collo  levantado  , 
Este  soberbo  a  recompensa  busca, 
Co'  a  fronte  baixa,  com  o  olhar  em  foço, 
O  vencido  dos  campos  triste  foge  , 
E  só ,  entre  os  remotos  fundos  valles 
Occulta  o  opprobrio ,  e  a  vingança  estuda. 
Vingança  sanguinosa,  em  que  embebido 
O  animal  se  nutre,  contra  os  troncos 
Já  a  ensaiar  começa  o  corno  agudo , 
E  parte  em  lascas  o  ferido  lenho. 
As  forças  e  o  vigor  em  fim  restaura , 
Renova-se-lhe  a  raiva  ,  e  já  bramindo 
Corre  ás  planícies,  e  o  rival  procura. 


i68  GEORGICAS. 

Taes  do  prazer  o  instincto,  e  seus  eflfeitos 
São  entre  os  animaes ;  e  se  desejas 
Prevenir  os  desastres ,  separados 
Traze  os  de  sexo  vario.  As  éguas  pastem 
N'huni  sitio,  as  vaccas  noutro,  áquem  os  touros 
Os  cavallos  alem ;  pois  de  outra  sorte 
Na  estação  dos  amores ,  o  ciúme 
Estrago  ha-de  fazer,  e  fracos  filhos 
A  mai  produzirá,  que  fecundara 
Hum  vencedor  no  próprio  sangue  tinto. 

Mas  já  contêm  no  ventre  a  vacca  prenhe 
Do  criador  a  esp' rança  e  a  riqueza , 
Que  deve  o  objecto  ser  de  seus  cuidados. 
Defende-a  das  injurias  da  atmosphera, 
Dos  grandes  frios ,  do  calor  ardente , 
Das  copiosas  chuvas ;  seu  trabalho 
Modera  por  extremo ,  e  d*ella  aparta 
Quanto  possa  feri-la,  e  incommodá-la; 
Mais  que  nunca  bons  fenos  lhe  ministra , 


CANTO  V.  169 

Cu  raízes ,  ou  hervas  nutrientes ; 

Ate'  que  tendo  nove  mezes  findos , 

Para  parir  a  cama  lhe  prepara 

Era  hum  próprio  curral  com  brandas  folhas ; 

E  pouco  a  pouco  a  restitue  aos  pastos , 

Ao  trabalho  a  final ,  e  á  liberdade. 

Nos  princípios  a  cria  em  quente  abrigo 
Vigilante  conserva,  e  com  prudência 
Cinco  ou  seis  dias  tão  somente  a  teta 
Lhe  ministra  da  mãi  a  horas  dadas , 
A  fim  que  a  mesma  mãi  se  não  esgote. 
Quatro  m.ezes  ao  menos  mamar  deve 
O  novilho,  que  ao  jugo  he  destinado, 
E  com  hervagens  tenras,  com  bons  fenos, 
Com  sêmeas,  com  raízes  pouco  a  pouco 
Cuidadoso  procura  desmamá-lo. 
Quando  o  rigor  vier  do  frio  inverno 
Pouco  tempo  nos  campos  o  demora ; 
Tarde  deixe  o  curral,  n  elle  entre  cedo. 

i5 


ifo  GEÒPiGICAà. 

Para  manso  o  tornar  jártiais  te  esqtiedá 
Manear-lhe  os  aillda  curtos  cornos, 
E  os  pés  ,  para  o  ir  formando  á  ferra. 
Tratá-lo  com  dureza  em  fim  evita , 
Que  a  doçura  he  só  ganha  com  doeu^a, 

Debalde  modo  brando  empregarias 
C'o  touro,  que  a  natura  fez  indócil, 
Atrevido  e  soberbo  ;  e  se  domá-lo 
Ao  trabalho  he  possivel,  e  dobrar-lhe 
Ao  jugo  a  cerviz  dura,  jamais  n'elle 
O  sofFrimenlo  e  a  mansidão  se  encontrão. 
Mal  trinta  mezes  conta ,  então  privado 
De  procrear,  o  touro  toma  o  nome, 
E  o  caracter  de  boi ;  então  esquece 
O  soberbo  animal  o  antigo  orgulho , 
Esquece  a  independência;  e  humilde  escravo 
He  d'aquellè ,  que  ò  rege ,  e  de  quem  firme 
O  serviço  supporta,  e  soffre  o  jugo. 


CANTO  V.  i^^ 

Porem  nunca  ao  trabalho  rigoroso , 
Aquelle  que  dp  boi  as  forças  preza, 
O  sujeita ,  antes  que  do  leite  os  dentes 
Por  novos  dentes  renovados  sejão ; 
O  que  aos  Ires  annos  faz  a  natureza. 
Os  anéis,  que  nos  cornos  se  originSo, 
A  idade  do  animal  marcão  de  sorte  ^ 
Que  a  mão,  úlem  de  três,  nos  cornos  conU< 
Pelos  anéis  o  numero  dos  annos. 
Deve  reger  prudência  cautelosa 
O  trabalho  do  boi ;  deve  evitar-Uie 
Duras  fadigas  pela  ardente  calma; 
No  estio ,  aproveitando  a  madrugada,, 
E  prendendo-o  de  novo  á  tarde  ao  jugo. 
O  que  habita  hum  terreno  pedregoso , 
O  que  destina  o  boi  para  çs  transportes , 
Com  vantajem  de  ferro  os  pés  lhe  forra.. 

Por  fins  ,  o  boi,  era  toda  a  vida  ejcravOi, 
Sente  os  effeitos  da  cruel  velhice ; 


172  GEORGICAS, 

Ditoso  se  cansado  das  fadigas 

De  huma  vida  de  penas ,  de  trabalhos , 

Esp'rando  em  paz  a  tarda  mão  da  idade , 

Seus  dias  acabasse  a  natureza  .' 

Mas  do  homem  escravo  em  quanto  vivo , 

Alimento  lhe  presta  alem  da  morte. 

M^^  gyifos  doze  o  sol  tem  completado , 
Muda-se  a  sorte ;  súbito  começa 
Hum  trato  favorável ,  mas  presagio 
Do  destinado  golpe  derradeiro. 
He  levado  a  abundantes  gordos  prados; 
Já  não  lhe  opprime  o  collo  o  forte  jugo; 
A  sêmea,  os  grãos,  os  nabos,  as  raizes 
Do  tenro  rábao,  a  batata  branda, 
Co  sal,  que  o  appetite  lhe  desperta, 
Se  lhe  prodigalizão;  mas  em  breve 
Toma  o  animal  carne,  e  a  rijos  golpes 
Por  terra  cahe  ás  mãos  d'aquelle  mesmo , 
Para  quem  só  tivera  força  e  vida. 


CANTO  V.  í;3 

Pacifico  animal,  ricco  thesouro 
Do  activo  agricultor,  inútil  fora 
Teus  louvores  tecer;  assaz  conhecem 
Os  donos  teus  teu  preço  :  as  forças  tuas , 
Teu  soíFredor  caracter  firme  e  manso 
Mais  que  outro  algum  te  fazem  próprio  ao  tir© 
Da  pesada  charrua ,  a  cujo  corte 
OppÕe  a  terra  huma  teimosa  força , 
Á.  cada  instante  renascente  e  nova. 
Ceres  te  estima  e  ama;  os  bons  cultores 
Com  justos  elogios  te  engrandecem. 

Nem  deixarei  ficar  no  esquecimento 
O  passivo  serviço  ,  os  úteis  dotes 
Do  jumento,  do  pobre  único  alivio; 
Da  mais  vasta  porção  da  humanidade, 
Que  langue  na  penúria ,  elle  somente 
O  trabalho  e  fadiga  he  quem  supporta. 
Se  com  elle  a  natura  foi  avara 
De  graça ,  de  belleza  e  de  elegância  , 

i5* 


174  GEORGICÁS. 

Co'  a  sobriedade  _,  c'o  vigor ,  c'o  geilo 

Com  que  os  máos  passos  vence,  co'  a  durezq.. 

Que  lhe  faz  afrontar  o  sol  e  as  neves , 

Assaz  o  indemnizou.  Como  seu  dono  , 

Condemnadp  á  penúria  e  ao  trabalho, 

O  tojo  hirsuto,  o  cardo,  as  duras  folhas  , 

As  vergonteas  das  arvores,  a  relva. 

Toda  a  espécie  de  grão ,  todo  o  legume 

Lhe  serve  de  alimento ;  longa  vida , 

Inda  a  pezar  de  hum  trato  áspero  e  duro. 

Chega  o  triste  a  contar.  Oh  vós  cultores, 

Que  possuis  manadas,  se  quizerdes 

Mulos  apascentar  em  vossos  campos , 

Por  campanheiro  o  burro  dai  ás  éguas ; 

Porem  que  seja  forte,  de  olhos  vivos, 

De  fixa  orelha,  de  luzente  pello, 

De  mais  de  três ,  e  menos  de  dez  annos. 

NÃo  mais ,  não  mais  de  agrícolas  manadas ; 
Adeos  por  huma  vez  tenazes  leivas ; 


CANTO  V.  175 

Adeos  forte  charrua ,  bravos  touros , 
Ágeis  cavallos,  vigorosos  mulos; 
Adeos  em  fira  amados  lavradores. 
Nas  margens  de  hum  regato  humilde  corto 
Flexiveis  canas ,  com  que  brinca  o  vento  , 
Por  entre  ellas  ligeiro  volitando; 
Co'  a  branda  cera  os  varies  cauaes  uno; 
De  Pan  á  imitação ,  correndo  os  lábios 
Co' a  doce  frauta,  agora  ante  mim  chamo 
Das  rústicas  malhadas  os  pastores. 

Vinde  ,  oh  mansos  rebanhos,  ao  meu  lado 
Saltem  sobre  a  verdura  os  cordeirinhos , 
De  pedra  em  pedra  os  cabritinhos  saltem. 
Balai  em  torno  a  mim  ,  mansas  ovelhas, 
Trincai  os  ramos ;,  cabras  roedoras; 
E  em  quanto  o  Deos  capripede  me  guia 
Os  accentos  e  a  voz  no  humilde  metro , 
Ah .'  vem  junto  de  mim,  oh  Kize  amada  , 
Acompanhar  c'o  teu  meu  doce  canto. 


1-6  GEORGICAS. 

EscuTAi-ME  oh  pastores ,  que  nos  campos 
Guiais  gado  lanígero;  ao  terreno 
Acommodai  as  raças;  pois  que  o  solo, 
Que  nutre  a  espécie  menos  encorpada , 
Nutrição  á  maior  recusar  pode. 
Porem  qualquer  que  for  das  vossas  rezes 
A  grandeza,  da  lan  cuidai  attentos ; 
D'ella  tece  o  pastor  a  humilde  manta, 
E  a  purpura  dos  reis  se  tece  d'€lla. 
Preza  o  alvo  carneiro,  que  no  vello 
Fino  e  sem  mancha  a  neve  pura  imita. 
Dá-lhe  por  companheira  a  branca  ovelha , 
E  nunca  no  rebanho  teu  consente 
Das  cores  variadas  a  mistura. 
Nunca  permitte  nelle  a  ovelha  annosa, 
Nem  a  que  tem  symptomas  de  moléstia. 
Mormente  se  for  mal  contagioso. 

Oh  quão  hábil  convém  que  o  pastor  seja 
Na  practica  c  no  traio  do  seu  gado  I 


CANTO  V.     .  177 

Das  táns  conhecer  deve  a  qualidade , 
Quaes  para  as  rezes  são  os  pastos  próprios , 
Quaes  são  do  bom  carneiro  ,  e  boa  ovelha 
Para  dar  boa  raça  os  caracteres; 
Em  que  tempo  convenha  unir  os  sexos , 
As  crias  desmamar ,  e  finalmente 
Do  vello  despojar  as  rezes  mansas. 
Necessário  he  também  que  attento  e  experto 
Distingua  os  males,  que  o  rebanho  opprimem, 
D'elles  conheça  as  causas  e  os  remediei. 
Se  assim  não  for,  em  vez  de  ver  vingado, 
Verá  diminuir-se  o  seu  rebanho ; 
Ha-de  a  morte  roubar-lhe  as  novas  crias, 
Ha-de  as  mais  extinguir ,  e  pouco  e  pouco 
Definhada  verá  a  espécie  toda. 
Mas  se  o  pastor  exp'rimentado  e  attento 
Segue  os  conselhos  com  que  a  arte  o  guia , 
Em  qualidade  e  em  numero  crescendo 
Irão  de  dia  em  dia  as  rezes  suas. 


178  GEORGICAS. 

Quando  os  ventos  do  sul,  que  as  aguas  trazem, 
Toldão  o  ar  de  nuvens  procellosas  , 
Quando  o  ceo,  de  torrentes  abundante, 
Inunda  os  campos ,  fi  submerge  os  prados ; 
Ou  sobre  a  terra  as  neves  amontoa , 
Crestando  as  folhas  das  rasteiras  plantas. 
Do  gelador  nordeste  o  bafo  iroso  , 
Ao  pasto  os  teus  rebanhos  não  conduzas; 
Porem  de  brandos  fenos  resguardados 
No  ajprigo  dos  curraes  a  ovelha  nutre. 
Jamais  no  outono,  inverno,  ou  primavera 
Pelo  campo  orvalhadp  a  ovelha  paste  ; 
Só  correr  as  campinas  lhe  permitte , 
Depois  que  o  sol  em  ondeado  fumo 
Da  fresca  aurora  dissipara  o  pranto. 

Jamaií?  pelas  pastagens  pantanosas 
Os  lanigeros  gados  pascer  devem : 
Jamais  nos  vé^Ues  húmidos  e  frios, 
Ou  á  ssmbra  do  bosque  onde  não  enlrSo 


CANTO  V.  179 

Do  sol  os  raios ,  que  em  vapor  disslpão 
A  humidade  excessiva  do  terreno. 
Huma  herva  fina  e  enxuta  ,  qual  se  encontra 
Nas  fecundas  planicies  elevadas , 
Ou  nas  brandas  encostas  das  collinas , 
Mais  que  tudo  convém  a  taes  rebanhos. 

Mas  se  no  inverno  os  regelados  ventos, 
As  neves  e  os  orvalhos  são  nocivos  , 
A  mansa  ovelha ,  mais  nocivo  he  inda 
O  bafo  abrasador  do  quente  estio , 
Quando  raios  de  fogo  dardejando 
D'entre  os  braços  do  cancro  furibundo , 
O  sol  ardente  o  cérebro  lhe  fere, 
Fraco  em  extremo,  tenro  e  delicado. 
Por  isso,  então  prudente  o  pastor  cauto 
De  manhan  para  o  occaso,  e  pela  tarde 
Para  o  nascente  o  gado  seu  dirige ; 
Mas  do  dia  no  meio ,  frescas  sombras 
Sob  os  copados  troncos  lhe  procura. 


iSo  GEORGICAS. 

Oh  pastor  vigilante,  teus  cuidados 
Redobra,  quando  lá  no  fresco  outono 
A  terra  descem  as  primeiras  aguas , 
Para  que  em  turvas,  podres  alagóas 
Hum  veneno  mortal  não  beba  o  gado ; 
De  tempo  em  tempo  então  somente  o  lev» 
Aos  correntes  e  límpidos  ribeiros , 
Ou  crystallinas  fontes ,  onde  a  ovelha 
Possa  sem  risco  algum  matar  a  sede. 
Só  providencias  taes,  só  taes  desvelos 
Fazem  vingar  lanígeros  rebanhos. 

Porem  se  o  pastor  quer  que  as  mansas  rezes 
Recompensem  do  trato  os  seus  cuidados. 
Cumpre  que  os  indivíduos  mais  perfeitos 
Para  a  raça  formar  attento  escolha. 
Hum  carneiro  de  lan  alva  e  sem  mancha 
Vigoroso,  sadio,  de  olhos  vivos, 
De  larga  fronte,  de  focinho  rombo. 
Estreitas  curtas  ventas,  grande  ventre, 


CAíTrO  V.  i8i 

ILanosa  e  longa  a  orelha,  como  a  cauda, 
O  collo  grosso ,  o  corpo  alevantado  : 
A  ovelha  de  bom  pello  e  curtas  pernas , 
De  longas  tetas,  larga  espadoa  e  ventre, 
De  olhar  vivo ,  sadia ,  e  igual  na  alvura , 
São  origens  de  hum  óptimo  rebanho ; 
Inda  melhor,  se  acaso  se  concede 
Somente  a  doze  ovelhas  hum  carneiro. 
Bem  como  ellas ,  de  dois  ate'  oito  annos; 

O  pastor  vigilante  e  cuidadoso 
Não  permitte  que  o  macho  as  fêmeas  toque 
Livremente  e  sem  regra  :  se  pertende 
Que  huma  só  vez  no  anno  a  ovelha  paira 
No  outono  a  faz  cobrir,  desta  arte  a  cria 
Á  luz  virá  na  tloce  primavera  ; 
E  no  resto  do  tempo  os  seus  carneiros 
Das  ovelhas  separa,  e  traz  distantes. 
Se  porem  duas  crias  quer  n'hum  anno , 
Depois  que  huma  da  mãi  já  não  carece  , 

i6 


i82  GEORGICAS. 

Ao  carneiro  de  novo  a  ovelha  entrega , 

E  esta ,  o  Iructo  no  ventre  conservando 

Cinco  mezes ,  no  outono  á  luz  o  mostrai. 

O  nascido  animal  por  outo  dias. 

Ao  menos,  no  curral  guarda  e  conserva, 

Mormente  se  nasceo  em  tempo  frio. 

Da  prenhe  ovelha  atteutamente  cuida ; 
Do  resto  do  rebanho  á  parte  a  encerra, 
Durante  a  fria  noute  ,•  quanto  possas 
Do  feroz  lobo  o  uivo  carniceiro 
Ao  timido  animal  ouvir  evita ; 
D'outra  maneira ,  o  susto  muitas  vezea 
Desorganiza  o  iructo  nas  entranhas  , 
Com  a  sua  da  mãi  levando  a  vida. 

Benigno  acolhe  Pan  o  pastor  habií, 
O  qual,  se  a  ovelha  afilho  seu  não  lambe, 
A  íim  de  o  enchn^ar,  de  sal  o  cobrC/ 
Para  que  du  appetite  convidada 


CANTO  V.  i83 

O  auxilio  maternal  lhe  não  recuse; 
Se  ella  o  leite  lhe  nega,  ao  cordeirinho, 
•     Inda  a  pezar  da  mãi,  a  teta  entrega; 

Se  leite  assaz  não  tem,  lhe  augmenta  a  copia, 
Ministrando-lhe  a  sèmea,  ou  a  cevada, 
O  nabo,  os  rábãos  nutrientes  hervas, 
O  feno  da  luzerna ,  da  hera  as  folhas , 
Temperadas  c'  o  sal ,  que  a  ovelha  preza. 

Qde  direi  eu  agora  em  teu  abono , 
Pastor,  que  do  cordeiro  que  padece 
Minoras  o  penar,  examinando 
Donde  pro  em  q  mal,  paraevitar-lho? 
Ao  que  o  frio  oífendeo,  em  quentes  panoa 
Envolves  carinhoso ,  e  junto  ao  fogo 
O  alento  vital  lhe  reanimas; 
Ao  que  findos  dois  mezes,  se  desmama^ 
Da  mãi  não  só  apartas ,  mas  lhe  impedes 
Ouvir  delia  os  balidos  sau(losos; 
A  bouis  pastos  q  guias,  brandas  sêmeas 


1 84  GEORGICAS. 

Ao  principio  lhe  dás ,  e  os  grãos  cozidos 

Ou  na  agua ,  ou  no  leite  saboroso. 

E  que  direi  d'aqueHe  que  os  cordeiros 
Âos  quinze  dias  castra,  excepto  os  poucos, 
Que  para  raça  escolhe ;  que  as  borregas 
Priva  de  conceber,  para  que  dêem. 
Como  os  carneiros ,  lan  e  earne  boa , 
Castrando-as  igualmente  ás  seis  semanas 
Depois  que  ellas  tem  visto  a  luz  do  dia ; 
Que  no  curral  suspende  o  sal  em  pedras , 
Para  que  o  gado  livremente  as  lamba , 
E  o  sadio  vigor  assim  conserve ; 
Que  para  tosquiá-lo  em  fim  aguarda 
Que  na  fresca  risonha  primavera. 
Afastando  a  lan  velha,  já  da  nova 
Venhão  sahindo  as  pontas  não  frizadas  ; 
Que  se  acaso  ferio  no  corte  as  rezes , 
Afim  de  prevenir  a  sarna  e  ronha , 
As  cura  sem  tardança?  Oli  vós  pastores,. 


CANTO  V.  i85 

Se  o  lanígero  gado  assim  tratardes , 
Nelle  achareis  segura  recompensa. 

Porem  tu,  que  as  inquietas  duras  cabras 
Tens  a  teu  cargo ,  ao  pasto,  em  quanto  o  fresco 
Orvalho  sobre  as  plantas  se  demora , 
Na  manhan  as  conduze ;  a  hum  tal  rebanho 
Não  só  apraz  pascer  nos  largos  campos. 
Ou  nas  doces  encostas  das  collinas, 
Antes  prefere  a  cabra  pendurar-se 
Dos  elevados  cumesTlas  montanhas , 
Dos  serros,  das  selvagens  penedias, 
Das  escarpadas  rochas ,  das  l)arreiras 
Dos  fundos  horrorosos  precipícios; 
Desde  a  mais  tenra  infância  as  mais  seguindo, 
Trepão  de  pedra  em  pedra  os  cabritinhos, 
E  folgão  de  escolher  entre  os  rochedos 
Os  novos  rebentões  de  agrestes  plantas , 
As  vergonteas  mais  tenras  dos  arbustos ; 
E  das  arvores  novas  o  epiderme ; 


1 86  GEORGICAS. 

Mas  impede  que  o  dente  seu  nocivo 
Toque  a  planta  que  estimas,  cuja  morte 
As  mais  das  vezes,  segue  hum  tal  insulto. 
Para  tirar-lhe  o  leite,  a  cabra  ordenha 
A  noute,  e  sobre  a  fresca  madrugada; 
Porem  nunca  de  sorte,  que  ao  cabrito 
Do  preciso  alimento  a  copia  falte. 

Se  hum  rebanho  escolhido  ter  pertendes, 
Boas  cabras  procura  e  fortes  bodes. 
De  três  annos  té  sete ,  ^P^nde  corpo , 
Cabeça  leve,  grosso  ,  forte  coUo, 
Pendente  orelha,  coxa  reforçada, 
A  marcha  firme,  a  barba  espessa  e  longa 
O  bode  deve  ter ;  hum  fino  pello 
Huma  garupa  larga ,  hum  corpo  forte , 
De  leite  as  longas  tetas  abundantes , 
"Vigor  e  agilidade  a  cabra  tornão 
Para  a  propagação  mais  bella  e  própria; 
E  se  d'esla  os  filhinhos  vigiares , 


CANTO  V.  187 

Verás  multiplicar  os  teus  rebanhos, 
E  terás  nomeada  entre  os  pastores. 

Oh  tu ,  que  volves  com  o  arado  a  terra , 
Tu  que  as  arvores  tens  a  teu  cuidado, 
Tu  vinhateiro,  e  vós  em  fim  pastores, 
Adeos  por  huma  vez.  He  tempo  agora, 
Que  no  seio  da  paz  e  do  socego 
A  minha  Musa  e  o  estro  meu  descansem. 
Em  quanto  assim  cantava  ao  som  da  frauta , 
Doce  amizade  esforços  mil  fazia 
Por  lançar-me  nos  braços  do  repouso 
Por  ella ,  em  fim,  completos  os  meus  votos, 
Consegui  acabar  singellas  rimas 
Ao  lado  do  só  bem  por  que  anhelava. 

Tu  pois ,  que  me  guiaste  a  tal  ventura  , 
Tu ,  prezado  Tudella  (42) ,  se  rompendo 
A  barreira  dos  séculos,  chegarem 
Meus  versos  aos  ouvidos  dos  vindouros; 


i88  GEORGICAS. 

Se  ainda  hum  dia  a  Musa  venturosa 
Me  poder  franquear  da  Fama  o  templo  , 
Dentro  delle  gravar  minha  mão  grata, 
Sobre  as  aras  da  Deosa,  irá  teu  Nome 
Junto  ao  Nome  de  Nize ,  quaes  no  peito 
A  amizade  e  o  amor  m'os  tem  gravado. 


riM. 


NOTAS. 


Huna  eminente  vêm  a  Cjmosura  (i) 
pag.  5. 

Cynosura  ,  que  significa  cauda  de  cão ,  ou 
segundo  a  etymologia  oriental ,  foco  de  luZy 
he  hum  dos  nomes  dados  á  Ursa  menor , 
constellação  a  mais  vizinha  do  pólo  boreal, 
e  serve  aqui  de  designar  o  mesmo  pólo.  Nos 
paizes  circumpolares  a  posição  da  es{jhera 
he  parallela  ,  isto  he  ,  o  equador  serve  de 
horizonte,  e  neste  caso,  os  astros,  que  no 
movimento  diurno  descrevem  circulos  paral- 
lelos    ao    equador  ,    e   por    tanto   ao    hori- 


iQo  NOTAS, 

zonte  de  taes  paizes ,  não  varlao  em  altura ; 
o  sol  porem  será  alli  visível  metade  do  anuo , 
e  a  outra  metade  occulto ;  conforme  oceupar 
a  parte  boreal ,  ou  austral  da  ecliptica ,  nãq 
attendeudo  ao  eíFeito  da  refracção, 

P  ^ustral  Xyphias  (2)  no  hemispherio  opposto; 
pag.   5. 

Xyphias  ,  ou  Dourada,  nome  de  huma  das 
ponstellações  vizinhas  ao  pólo  austral ,  des- 
criptas  por  Bayer  ,  serve  aqui  de  designar 
O  mesmo  pólo, 

í  o  signo  a  Pan  no  Egypto  consagrado  (3) 
pag.  5. 

O  Capricórnio  ,  signo  consagrado  pelos 
llgypcios  ao  Deos  Pan,  cujo  symbolo  era  hum 
bode.  Aqui,  tanto  o  Cancro,  como  o  Capri- 
córnio, são  tomados  pelo^  trópicos  do  mesm<j 
nome  ,  que  terminaQ  a  aona  tórrida. 


KOTAS.  191 

E  já  quando  alumia  a  sacia  Themis.  (4) 
pag.   6. 

Os  habitantes  do  equador  lemaespliera  per- 
pendicular, e  por  conseguinte,  o  sol  no  zenilh 
nos  dois  pontos  equinoxiaes  de  Aries,  e  da 
Libra.  Os  Gregos  fabularão  ser  o  Aries  celeste 
ô  do  tozão  (!e  ouro  dos  Argonautas ,  e  a 
Libra,  a  Balança  da  virgem  da  justiça  Themis. 

É  qual  iman ,  volvendo  ao  norte  a  flecha ,  (5) 
P«S-  7- 

As  arvores  inclinão  a  flecha  para  o  nas- 
fcentn,  por  ser  o  ponto  de  donde  primeiro 
se  lhes  apresenta  a  luz  ,  agente  essencial  da 
vegetação  aci'ia.  O  cedro  do  Libano,  arvore 
inajestosk  ,  que  estende  horizontalmente  as 
suas  vigorosas  e  longas  braças,  he  daquella 
lei  geral  a  única  excepção  couheclda  ,  pois 
que  a  sua  flecha  se  dirige  sem!)re  para  o  norte; 
phenomeno ,  cuja  Causa  a  analjse  chymica ,  e 
as  experiências  da  physica  vegetal  não  pode- 
rão ainda  descobrir. 


192  NOTAS. 

Das  Hyades  chorosas ,  (6)  que  da  frente 

Hyades  ,  nome  de  humã  pequena  con- 
Stellação ,  que  forma  a  cabeça  do  Taurus  : 
todos  sabem  ique  os  poetas  fabularão ,  qué 
estas  filhas  de  Atlas  e  de  Etheria  forão  trans- 
formadas em  astros  pelos  Deoses,  condoídos 
dos  prantos ,  que  ellas  derramavão  continua- 
mente pela  morte  de  seu  Irmão  Hyas.  Horácio 
disse  :  et  tristes  Hyades....: 

A  celeste  Balança  (7):  a  calma  ardente 
pag.  12. 

Chega  o  sol  á  Balança  ,  ou  Libra,  -^o  signo 
da  ecliptica,  em  28  de  septembro;  começa 
b  outono  com  o  equinoxio. 

O  fogoso  Oiião  (8)  c'o  braço  ingente, 
pag.  i5. 

t)riãô>  ou  Urion^  grande  constellação  nieri- 


NOTAS.  igS 

tlional,  visível  nas  uoutes  do  inverno  princi- 
palmente. 

O  amargo  tremoço,  a  fusiíorme  (9) 
pag.  i5. 

Chamão-se  raízes  fusíformes  as  que  tem 
a  figura  de  hum  fuso ,  como  a  cenoura ,  o 
rabão ,  etc. 

Seus  tuberosos  pomos  (10)  a  batata; 
pag.  17. 

Chamão-se  tuberas  certos  corpos  carnudos, 
farínhosos,  de  qualquer  figura  que  sejão,  que 
arrancados,  e  ate'  ás  vezes  cortados  em  pedaços, 
são  capazes  de  continuar  a  sua  espécie;  com- 
tanto,  que  em  cada  pedaço  exista  hum  olho, 
pois  que  elle  contêm  todos  os  elementos  de 
germinação  de  huma  nova  planta.  Raízes  tu- 
berosas  são  as  que  constão  de  huma  ou  maíâ 
tuberas. 

Ou  o  onobrychis  próprio  á  terra  ingrata,  (n) 
pag.  17. 

O  onobrychis  ( sainfoin  commiin  dos  Éran- 

17 


194  íiOTAá. 

cezes;  hedjsarum  onobrychis  dos  botânicos  ) 
he  entre  as  plantas  da  família  leguminosa  adop- 
tadas para  prados  artificiaes,  a  que  parece  mais 
útil,  e  de  mais  extensa  applicação  para  este 
fim  nas  diíFerenteá  provincias  de  Portugal. 

i».  Porque,  sendo  indigena  na  Europa 
meridional,  e  nella  originaria  das  montanhas 
calcarias,  facilmente  pode  prosperar  com  a 
cultura   no   clima  d'este  reino. 

2^.  Porque ,  exigindo  as  plantas  de  prado  arti- 
ficial, taes  como  a  luzerna,  o  trevo,  etc,  terreno 
plano,  profundo  ,  pouco  compacto  e  fresco  , 
o  onobrychis  prospera  nas  terras  mais  seccas, 
elevadas ,  pedregosas  ,  e  até  nas  areentas  , 
principalmente  se  na  composição  delias  entra 
substancia  calcrria  ,  a  qual  se  encontra  quasí 
geralmente  nos  terrenos  de  Portugal. 

3®.  Porque,  o  onobrjchis,  tanto  na  semen- 
teira, como  nos  amanhos  para  as  suas  colheitas 
annuaes ,  exige  menos  trabalho  e  menos  adubo 
do  que  as  dittas  plantas;  he  com  tudo  mui  útil 
semeá-lo  em  terra  profundamente  lavrada  , 
e  ainda  melhor  se  nella  tem  precedido  cul- 
turas taes  como  a  do  milho  ,  da  batata  ,  etc. , 
cujos  amanhos  dividem  a  terra  ,  e  extinguem 


NOTAS.  193 

nella  as  hervas  nocivas  :  huma  e  outra  cousa 
he  conveniente  para  que ,  no  primeiro  e  se- 
gundo anno,  ganhem  vigor  as  raizes  desta 
planta  ,  as  quaes ,  em  tal  caso  ,  profundão 
perpendicularmente  até  dez  palmos  e  mais , 
de  que  provêm  o  vingar  o  onobrjchis  nos 
terrenos  ingratos  e  áridos ,  pois  que  pode , 
pelas  suas  raizes ,  procurar  em  grande  pro- 
fundidade os  suecos  necessários  ávegçtação. 

4".  Porque ,  ainda  que  a  luzerna  ou  o 
trevo  produzem  maior  quantidade  de  herva , 
a  do  onobrychis ,  que  fornece  nos  paizes 
meridionaes  três  ou  quatro  abundantes  cortes 
em  cada  anuo,  ou  seja  dada  em  verde  ,  ou  em 
feno,  he  mais  substancial,  e  conserva  os  gados 
mais  vigorosos  e  menos  expostos  a  moléstias. 
5o.  Porque,  o  onobrychis,  que  dura  em 
prado  de  10  ate  i5  annos,  pela  deccmpo- 
sição  das  suas  abundantes  raizes ,  melhora 
consideravelmente  o  terreno  ,  para  nelle  se 
praticar  a   cultura  das   cereaes. 

Tanto  os  Inglezes,  como  os  Francezes  tem 
conhecido  as  vantajens  da  cultura  desta 
planta,  e  por  isso  huns  e  outros,  ha  annos 
a  esta  parte ,  tem  multiplicado  muito  os  prados 


196  NOTAS, 

delia.  He  digno  de  se  notar ,  e  de  servir 
de  exemplo  o  que  tem  acontecido  na  parte 
da  Champagne  denominada ,  pela  esterilidade 
do  seu  terreno,  Champagne  pouilleuse;  esta 
porção  daquella  provincia  era,  ha  menos  de 
quarenta  annos ,  o  districto  mais  miserável  de 
França ;  os  seus  gados  poucos  e  enfezados , 
as  suas  arvores  raras  e  mesquinhas  ,  e  as  co- 
lheitas das  cereaes  nunca  supprião  ao  sustento 
annual  dos  seus  então  infelizes  habitantes, 
os  quaes  com  a  introducção  dos  prados  do 
onobrychis ,  tem  feito  desapparecer  o  aspecto 
indigente  daquelle  paiz ,  aonde  com  este 
meio,  nelle  actualmente  mui  generalizado, 
as  terras  produzem  abundantes  colheitas  de 
cereaes  ,  crião  arvores  perfeitas  ,  e  sustentão 
gados  vigorosos. 

Musa ,  ao  agricultor ,  da  marga  (12)  o  uso 
pag.  21. 

A  marga  he  hum  composto  de  carbonate 
de  cal ,  e  de  alumina  ,  ou  argila  pura ;  porem 
(i  proporção  dos  dois  principios ,  que  a  con- 


NOTAS.  197 

stituem^  varia  ao  infinito,  e  he  esta  variedade 
que  produz  as  diíFerentes  espécies  de  mar- 
gas, próprias  para  adubar  os  diversos  ter- 
renos. As  margas  são  quasi  todas  coradas 
pelo  ferro  ,  e  parecem  provir  da  decompo- 
sição dos  mixtos  naturaes  de  cre  e  argila, 
contendo  todas  mais  ou  menos  silicia. 


E  vai  da  libra  ao  furibundo.  Scorpio :  (i3) 
pag.  34. 

O  Scorpião  he  liuma  constellação  ,  que 
fica  aos  pés  do  Serpentário .  dedicada  a 
Esculápio  de  Epidauro ,  e  que  o  representa 
tendo  nas  mãos  huma  serpente.  He  também 
chamado  Scorpião  o  oulavo  signo  da  ecHp- 
tica;  e  ainda  que  hoje  esta  outava  divisão 
do  gyro  solar  não  corresponde  já  á  con- 
stellação do  Scorpião ,  com  tudo ,  como  con- 
serva o  nome  antigo  ,  aqui  o  texto  applica  ao 
signo  a  posição  e  caracteres  da  constel- 
ação. 


■7*' 


1 98  NOTAS. 

Ocyroc  (14)  cobre  os  grãos  co'a  terra  solta, 
pag.  54. 

Ocyroe ,  filha  do  centauro  Cliiron ,  e  de 
Charillo  ,  pretendendo  conhecer  o  futuro,  foi 
convertida  em  egoa. 

Já  o  estanae  (i5)  ao  pistillo  fecundado 
pag.  4i. 

Os  órgãos  sexuaes  das  plantas  dividem-se 
cm  estames,e  pistillos ;  a  funcçãodosestames, 
ou  órgãos  masculinos,  he  fecundar  com  o  pó, 
que  contêm  nas  chamadas  antheras,  os  ór- 
gãos femininos,  ou  pistillos ;  findo  isto,  está 
completo  o  fim  da  florescência  :  os  estauies 
e  a  coroUa  ,  isto  he ,  o  tegumento  dos  órgãos 
sexuaes  immediatamente  contíguo  a  elles  , 
murchão  ,  e  deperecem. 

E  liuma  aura  impura  (16)  próvidas  embebem; 
pag-  59. 

Os  vegetaes  tem  a  propridade  de  exhalar 


NOTAS.  199 

de  si ,  quando  estão  expostos  á  luz ,  p.  oxy- 
geneo  ,  ou  ar  vital ,  e  pelo  contrario  a  de 
decompor  o  gaz  acido  carbónico  ,  gaz  im- 
próprio á  combustão  e  respiração. 

E  com  o  próprio  unguento  (17)  humedecido 
pag.  78. 

O  unguento  a  que  os  Francezes  chamãa 
de  S.Fiacre,  patrono  dos  pomareiros ,  he  hum 
composto  de  argila  e  bosta  de  boi ,  e  cos- 
tumão  misturar-lhe  palha  miúda  para  o  tornar 
menos  fácil  em  fender-se ;  com  elle  cobrem 
as  feridas  feitas  nos  troncos ,  e  ramos  ,  até 
que  as  tenha  coberto  a  producção  da  casca. 

A  branca  alface,  o  nabo  turbinado,  (18) 
pag.  ^8. 

Diz-se  a  raiz  turbinada ,  quando  he  cónica 
verticalmente  ,  ou  se  assemelha  a  hum  pião 
bailando. 


300  NOTAS. 

O  morango  estolhoso  (19)  alli  floresce; 
pag.  80. 

Chama-se  tronco  estolhoso ,  aquelle  que 
sahindo  da  primeira  raiz ,  lança  em  mais 
ou  menos  distancia ,  novas  raízes  na  terra , 
e  neste  lugar  brota  dois,  ou  mais  estolhos, 
isto  he  ,  troncos  herbáceos ,  quasi  nus  de 
folhas ,    e  sem  juntas. 

A  reptante  (20)  bortelan ,  a  segurelha, 
pag.  80. 

Diz-se  a  raiz  reptante  ,  ou  serpejantc  , 
quando  he  horizontal ,  e  se  estende ,  lançando, 
radiculas  em  varias  distancias. 


De  nutrientes  capillares  (21)  ténues: 
pag.  87. 

Da-se  aqui  o  nome  de  capillares  ás  radi- 
culas mais  íinas  ,  que  lanção  de  si  os  ramos 
da  principal  raiz. 


NOTAS.  20 1 

O  caule  (t^i)  poupa,  e  inserindo  nelle 
pag.  88. 

O  caule  he  huma  espécie  de  tronco  ,  as 
mais  das  vezes  guarnecido  de  folhas,  que 
sustenta  huma  fructificação  nem  musgosa , 
nem  graminea,  nem  análoga  á  dos  grames; 
pode  ser  herbáceo ,  como  o  da  alface ,  e  le- 
nhoso ,  como  o   da  oliveira. 

Das  aves  a  li jao  (aS) ,  em  largas  dornas 
pag.  88. 

Transcrevo  aqui  o  que  se  acha  publicado  no 
30  tom.  part.  II,  pag.  3o  e  3i  dosAnnaes 
das  Sciencias,  das  Artes  e  das  Letras,  por 
me  parecer  a  mais  útil  explicação ,  que  posso 
apresentar  a  respeito  do  assumpto  da  pre- 
sente nota. 

«  O  desenvolvimento  da  germinação  hc 
»  difficil  nos  caroços  das  azeitonas,  não  só 
»  pela  dureza  da  sua  casca  ,  mas  também 
"  pela   parte  oleosa  ,   que  entra  na  corapo- 


202  NOTAS. 

»  slção  delia ;  ambas  estas  círcumstancias 
»  ohstão  á  fácil  introducção  do  calor  e  da 
»  humidade,  que  devem  concorrer  no  inte- 
»  rior  da  semente,  como  agentes  indispen- 
»  sáveis  daquella  operação  da  natureza. 

»  A  experiência  tem  mostrado  constante- 
»  mente  ;  lO  que  nos  sitios  abundantes  de 
»  caroços  de  azeitona,  por  exemplo,  na  pro- 
V  ximidade  dos  lagares  de  azeite,  e  até  nos 
»  olivaes  cultivados,  nào  se  vêem  nascer  zam- 
»  bujeiros ;  2°  que  nos  matos  frequentados 
»  por  animaes  costumados  a  comer  azei- 
»  tonas ,  e  principalmente  pertencendo  á 
»  classe  dos  ruminantes ,  por  exemplo  ,  as 
»  cabras,  e  nos  sitios  e  valiados,  em  que  as 
»  aves  que  se  nutrem  com  azeitona,  costumão 
y>  pousar  ,  se  encontrão  frequentes  zambu- 
»  jeiros.  Em  consequência,  os  animaes  e  as 
»  aves  são  os  únicos  semeadores  desta  arvore , 
»  os  quaes ,  tendo  pelo  calor  e  humidade  dos 
»  seus  intestinos  ;  diminuido  os  obstáculos 
»  acima  referidos  ,  lanção  a  semente  dis- 
»  posta  para  entrar  em  germinação.  Imi- 
»  tando  o  que  acontece  nas  aves  e  nos  ani- 
»>  mães ,  podemos  conseguir  hum  fácil  nas- 


NOTAS.  2o3 

»  cimento  de  zambujeiros  ,  e  formar  viveiros 
V  regulares  desta  preciosa  arvore.  » 

Para  apoio  do  que  fica  transcripto  ,  acres- 
centarei que  ,  percorrendo  e  observando 
em  diversas  estações  vários  sitios  de  matos 
e  de  vallados  silvestres  no  termo  de  San- 
tarém e  nas  vizinhanças  do  Zêzere,  tenho 
nelles  encontrado  muitos  zambujeiros  novos  , 
e  alguns  recem-nascidos ,  ao  mesmo  tempo 
que  não  descobri  em  laes  sitios  zambu- 
jeiros com  fructo  ,  ou  semente  ,  e  em  alguns 
dos  mesmos  sitios  não  vi  hum  só  zambujeiro, 
que  segundo  a  tardia  fructificação  desta 
arvore  ,  estivesse  em  idade  de  produzir 
sementes;  ou  porque  os  cultivadores  apro- 
veifão  louvai  elmente  oS  zamliujeiros  para  en- 
xertia e  plantação,  logo  que  chegão  á  gran- 
deza conveniente  para  semelhante  destino, 
segundo  as  circumstancias  da  nossa  actual 
agricultura;  ou  porque  os  povos  os  cortão, 
com  damno  da  mais  vantajosa  cultura  da 
oliveira  ,  e  os  destinão  para  lenha  ,  e  para 
outros  usos  ainda  mais  reprehensiveis,  qual 
he  o  dos  cajados   da  gente  do  campo. 

Por  tudo  o  que  fica  transcripto  e  exposto. 


2o4  NOTAS, 

parece-me  qúé  os  pássaros  e  os  animaes  sao  os 
únicos  semeadores  dos  zambujeiros  que  se 
encontrão  nos  matos  e  vallados. 

Tem  lançado  raiz.  Hum  tronco  herbáceo  (2.^) 

pag-  94- 

Herbáceo  he  propriamente  o  tronco  de  con- 
(Sistencia  não  lenhosa ,  e  que  perece  an- 
nualmente ;  porem  aqui  se  applica  o  termo 
herbáceo  á  consistência  tenra  da  nova  oliveira, 

Alli  existe  o  oxygcneo  puro^  ('26) 
pag-  99- 

O  oxygeneo  he  o  ar  respirável,  e  próprio 
á  combustão,  e  que,  unido  ao  azote  na  pro- 
porção de  21  para  79,  forma  o  ar  atmos" 
pherico  em  que  vivemos. 

Alli  o  nitrogeneo  azote  (26)  impuro 

pag-  99- 

O  nitrogeneo  ,  ou  azote,  he  hum  gàz  im- 
próprio á  combustão  e  respiração. 


WOTAS.  5o5 

O  carbónico  ar  (27)  nocivo  habita , 
pag.   100. 

O  gaz  acido  carbónico  he  hum  gaz  com- 
posto de  carbone ,  ou  carvão  puro  ,  e  de 
oxygeneo;  este  gazhe  impróprio  á  combustão 
e  respiração  ,  e  he  hum  activo  veneno  para 
os  animaes  expostos  á  sua  atmosphera. 

E  o  ligeiro  hydrogeneo  (28)  ao  alto  sobe. 
pag.  100. 

O  hydrogeneo  he  hum  gaz  assim  cha- 
mado ,  porque  a  sua  combustão  com  o  oxy- 
geneo produz  a  agua ,  de  que  estes  dois 
gazes  são  os  princípios  componentes  ;  este 
gaz ,  o  mais  leve  de  todos ,  he  impróprio  á 
respiração  e  combustão  ;  posto  que  não  seja 
hum  veneno ,  como  o  acido  carbónico. 

E  o  calórico,  agente  da  natura  (29)» 
pag.  100. 

Os  chymicos  modernos   tem  reconhecido 

18 


2o6  NÒTAâ. 

ser  o  calor ,  ou  calórico  ,  hum  fluido ,  ao  quaí , 
alem  de  muitos  outros  phenomeiios ,  se  deve 
o  estado  fluido  e  gazoso  das  diversas  sub- 
stancias ,  e  a  volatilização  e  dilatação  de 
todas ;  razão  pela  qual  aqui  se  chama  agente 
da  natureza. 

Calyces,  (3o)  e  corollas  de  mil  cores, 
pag.  io5. 

O  calyx  na  maior  parte  das  flores ,  lie  6 
tegumento  externo  dos  órgãos  sexuaes  ,  de 
Cor  verde ,  oií  menoâ  corado  que  a  corolía. 

Mil  parasitas  (3i)  vão  roubando  as  bradas; 
pag.   III. 

plantas  parasitas  são  aquellas,  cuja  raiz  eslá 
apegada  ao  tronco,  ou  pernadas,  de  outro  ve- 
getal, e  que  tirão  delle  os  suecos,  com  os 
quaes  vegctão  ,  e  por  isso  são  noci'  as  á* 
plantas  a  que  se  unem  ^  ou  em  que  nascem. 


NOTAS.  207 

O  óleo,  ainda  nas  drupas  (32) ,  contamina, 
pag.   116. 

O  fructo  (  botanicamente  fallando )  he  hu- 
Tna  ,  ou  mais  sementes  fecundadas  ,  e  nu- 
tridas sobre  o  seu  receptáculo,  até  perfeito 
estado  de  madureza.  O  tegumento  d'estras 
he  o  que  os  botânicos  chaiiião  pericarpo  ;  a 
drupa  he  huma  espécie  de  pericarpo  sem 
válvulas ,  nem  suturas  ,  carnudo ,  de  casca- 
coriacea  ,  e  contém  no  centro  huma  noz , 
ou  caroço. 

Conserva  do  zenith  e  do  horizonte,  (33) 
pag.  122. 

Novamente  se  toma  aqui  a  Cynosura  pelo 
pólo  ,  e  como  a  altura  d' este  Sobre  o  hori- 
zonte de  hum  lugar  he  igual  á  latitudç  do 
mesmo  lugar ,  vem  os  últimos  versos  a 
designar  os  paizes  comprehendidos  entre  o 
parallelo  do  25®,  e  o  do  4^^  ,  lat^ude  media 
entre  zero   e  noventa. 


2o8  NOTAS. 

Sobre  os  longos  sarmentos  (Sj)  já  dispostos, 
pag.  129. 

Sarmentos  são  varas  nodosas ,  as  quaes  to- 
cando na  terra,  ou  em  corpos  vizinhos ,  nelles 
se  arraigão  pelas  suas  juntas  ;  e  neste  lugar 
significão  propriamente  as  varas  da  videira. 

Do  ardente  alcohol  (35) ,  que  por  activo 
pag.   i3o. 

A  distillação  da  agua  ardente  por  hum 
calor  brando ,  produz  huma  substancia  muito 
inflamraavel  e  muito  volátil ,  que  se  chama 
espirito  de  vinho  ,  ou  alcohol ;  a  formação 
deste  he  devida  á  decomposição  do  principio 
assucarado  contido  no  mosto,  e  tanto  mais 
abundante ,  quanto  o  he  este  principio. 

A  sabida  do  gaz  forte  e  assassino  f  (36) 
pag.  144. 

O  gaz  acido  carbónico  he  hum  dos  pro- 


NOTAS.  2o<) 

duetos  de   qualquer  das   três  fermentações, 
viuosa  ,  acetosa  ,  pútrida. 

Que  na  pelle  reside,  (37)  o  calor  forte, 
pag.   144. 

O  principio  colorante  dos  vinhos  he  de 
natureza  resinosa  ,  e  contido  na  pellicula 
do  bago^  razão  pela  qual  os  vinhos,  só  depois 
de  feitos  ,  se  corão  ;  por  isso  que  só  então 
está  formado  o  alcohol ,  substancia  própria 
para  dissolver  e  extrahir  da  pellicula  o  prin- 
cipio colorante  resinoso. 

Que  na  pelle  reside  ,  o  calor  forte,  (38) 
p^g.  144. 

Hum  dos  phenomenos ,  que  acompanhão 
a  fermentação  vinosa,  he  a  producção  de 
calor ,  que  ás  vezes  chega  ao  decimo  outavo 
gráo  (  do  therraometro  de  Re'aumur).  Esta 
producção  de  calor  he  devida  á  fixação  do  ar. 


aio  NOTAS. 

cujo    contacto    he   indispensável   á    fermen- 

tacão. 

D'aí'finidade  ás  leis  obedecendo ,  (09) 
pag.  44. 

Chama-se  affinidade  aquella  força ,  que 
sem  cessar,  tende  a  reunir  os  princípios  sepa- 
rados; e  cohesão,  a  que  tende  a  conservar  no 
estado  de  combinação ,  ou  união  ,  os  que 
se  achão  combinados  ^    ou  unidos. 

E  no  fundo  tenaz  se  precipita;  (40) 
pag.   145. 

O  tártaro  he  hum  sal,  que  se  precipita 
pela  fermentação  vinosa ,  nas  paredes  e 
fundo  das  cubas  e  toneis.  Varias  expe- 
riências tem  mostrado  que  o  tártaro  existe 
formado  na  uva  ,  e  em  outras  substancias 
vegetaes  ,  e  parece  obrar  como  fermento 
na  fermentação ,  onde  a  sua  presença  he 
essencial,  visto  que  o  mosto,  inteiramente 
despojado  do  tártaro  ,  não  fermenta. 


NOTAS.  a  1 1 

Resinoso,  que  a  còr  do  vinho  encerra.  (4i) 
pag.  145. 

A  côr  dos  vinhos,  como  já  se  disse,  he 
devida  á  dissolução  no  alcohol  do  principio 
coloraute  e  resinoso ,  contido  na  pelle  do 
bago. 

Tu,  prezado  Tudella  (42),  se  rompendo 
pag.  187. 

O  Sni".  Fernando  Tudella  de  Castilho,  Fi- 
dalgo da  Casa  Real  ,  residente  na  villa  do 
Fundão  ,  e  meu  prezado  amigo  e  bemfeitor. 


riM  DAS  NOTAS. 


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